Minha tia velhinha de Taubaté (lembra dela? Procure na caixa de “busca” do “Ordem Livre”) me perguntou outro dia sobre o que eu achava desta história de liberais defenderem alguns princípios de “maneira doutrinária”. Tive que explicar para ela e, confesso, não foi fácil. Como muita gente por aí, ela também pensava que “liberalismo era coisa de empresários”. Difícil imaginar um homossexual aplaudindo a repressão a seus colegas em Cuba ou praticante do budismo feliz com o Tibete. Mais difícil ainda é imaginar que eles são “empresários” ou “alienados”, como se a alienação só valesse para o outro. Aliás, é comum ouvir discursos nos quais te acusam de estar “servindo a uma ideologia” porque “não existe neutralidade na ciência”, enquanto o acusador se arroga o direito de ser um “neutro”. Incrível? Sim, mas acontece todos os dias.
Minha tia entendeu o argumento e viu que, até por qualquer definição básica de liberalismo, seria difícil não ser liberal. Entretanto, há poucos liberais por aí. Por que? Esta realidade aparentemente paradoxal foi bem resumida por Jason Brennan (Libertarianism – what everyone needs to know. Oxford University Press, 2012): “…libertarianismo (ou liberalismo) não é uma visão que se possa dizer de senso comum, mas ainda assim suas idéias básicas são fundamentadas na moralidade do dia-a-dia”. O que Brennan chama de “moralidade do dia-a-dia” talvez seja mais identificada com o dia-a-dia do chamado mundo desenvolvido (países da OCDE, por exemplo).
Que moralidade é esta? Bem, não se acha correto sair por aí estuprando mulheres (ou homens), roubando, matando ou metendo o dedo nos assuntos alheios. Tanto isso é verdade que muito da indignação que vemos por aí são baseadas na ocorrência destes fatos. Alguém aí achou bonito o estupro coletivo seguido de morte daquela estudante de Medicina indiana? Não. Neste ponto, minha tia sorriu de maneira marota e me perguntou: então você acha que eu não deveria bater em alguém que não siga minha religião?
Veja bem, leitor, minha tia é uma daquelas católicas radicais. Por ela, as Cruzadas existiriam até hoje. Lembrei-me do livrinho do Brennan e lhe respondi: não, tia, nem se alguém estiver fumando, eu, se liberal for, acharei correto arrancar-lhe o cigarro da boca. Posso até argumentar com ele, mas não posso impedi-lo de fumar. Parece engraçado dizer isto hoje, mas uma perspectiva histórica ajuda a pensar melhor. Lembre-se dos jesuítas no Brasil. O que você sentiu quando lhe contaram a primeira vez sobre a aculturação dos mesmos? Gostou? Achou de bom gosto? Provavelmente não.
Agora, compare a aculturação com a minha compra de discos de música. Não adianta me dizer que “fui obrigado pela indústria cultural norte-americana” a comprar discos dos EUA. Este papo não cola porque a diversidade musical na sociedade é muito grande para que qualquer roqueiro, individualmente, queira impor a venda de seus discos em detrimento dos demais. Só se ele tiver um amigo no governo que faça isso por ele, sob a forma de lei.
Aliás, minha tia é uma devota cumpridora de leis também. Baixassem os senhores de Brasília, hoje, uma lei que proibísse mulheres de votar, ela nunca mais entraria em uma cabine de votação. Ela acha que devemos “cumprir as leis sempre”. É bom cumprir leis porque leis nos dão estabilidade sobre o futuro, tornando-o menos imprevisível. Mas será que leis são sempre feitas para serem respeitadas? Uma lei muito querida pelo governo brasileiro no passado dizia que a pessoa poderia escravizar um negro ou um índio. Capturou na selva? É seu. Quem realmente acha que esta é uma lei válida?
Foi nesta hora que pude falar com a minha tia sobre a questão dos direitos de propriedade. Ela me olhou e disse: “- Lá vem você falar destas coisas que empresário adora…privatizar!”. Aí eu me lembrei de um cartaz que vi, certa vez, numa destas marchas de protesto que pretendem melhorar o mundo só pela demonstração de convicções. Estava lá um sujeito com um cartaz que dizia, bem ofensivamente: privatize a sua mãe!
Falei com minha tia que tinha pena do rapaz. Afinal, sua mãe deveria viver na rua, provavelmente com centenas de parceiros sexuais. Minha tia se espantou. Deu para ver no rosto dela aquela expressão confusa. Mas não foi difícil lhe explicar o significado de tudo isso: a importância dos direitos de propriedade. Um escravo tem direito de propriedade sobre seu corpo? Não. Este foi, por uma medida do governo, alocada para seu senhor. Minha tia acenou com a cabeça, concordando. Aí eu lhe disse: “- Imagine a mãe do rapaz, tia. Se ela não é dona de seu corpo, ela é como escravo. Precisa ser privatizada urgentemente.
Foi então que minha tia entendeu que “privatizar” é uma coisa, “socializar perdas e acumular ganhos para poucos privilegiados” é outra. Por isso liberais gostam de leis que garantam os direitos para todos, sem discriminação. Se não for assim, então algum grupo (ou alguém, individualmente) ganhou uma lei e os outros não. Não pareceu atraente para minha tia, que poucos senhores de engenho tivessem direito a tantos escravos…e não porque ela quisesse ser senhora de engenho mas, convenhamos, na época, seria assim que uma senhora branca pensaria.
Minha tia ficou curiosa sobre esta estória de “liberais e direitos de propriedade”. Até então, ela acreditava em um discurso errado que diz que: “direitos de propriedade = capitalista rico e explorador”. Agora, confrontada com exemplos históricos e também com um pouco de informação, ela achava a realidade mais complicada. Até me elogiou: “- É, sobrinho, você entende mesmo um pouco de história e desta coisa de direitos de propriedade”. Agradeci-lhe lembrando-a que eu já havia pensado como ela antes, quando lia menos e confundia ciência com militância política, mas isto fica para outro dia.
Fonte: OrdemLivre.org
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