A atual crise será duradoura, com graves implicações econômicas. Estamos e ficaremos ainda mais pobres, endividados e menos produtivos.
A rede de proteção aos mais vulneráveis terá de ser estendida de forma permanente. Mas um debate pouco cuidadoso com os números e com a restrição fiscal já saltou para uma opção mais radical: a instituição de um programa de renda universal ou a simples perenização do atual auxílio emergencial.
Projetos nessas direções já foram até apresentados no Congresso. No entanto, está ausente do debate a questão fundamental: como ampliar os benefícios sociais sem criar restrições ao crescimento, que, em última instância, é de onde se pode extrair recursos. É surpreendente que décadas de estagnação não nos fizeram conscientes de que a redução da pobreza dependerá cada vez mais de ganhos de produtividade.
Transformar simplesmente o coronavaucher em um programa de renda básica permanente, ainda que com um valor menor, constitui um erro. A escolha feita durante a paralisação da atividade econômica não deve ser a mesma quando a economia volta a operar.
O auxílio emergencial foi uma solução temporária, adequada à restrição do isolamento social. O valor generoso e a falta de focalização foram inevitáveis, devido à comoção política e à pressa em colocar a política em prática. Já a construção de um programa de caráter contínuo está sujeita a novas restrições, sendo a mais importante sua viabilidade no longo prazo.
Mais de Solange Srour
Abrindo a caixa de Pandora
QE brasileiro, licença para gastar?
Qualquer retrocesso na globalização tornará recessão mais profunda
Qualquer proposta de aumento de gastos precisa respeitar os fatos:
1) a relação dívida/PIB chegará ao fim deste ano perto de 100%. Gastamos em menos de um ano o equivalente às despesas poupadas na reforma da Previdência;
2) os recursos são finitos, e existe restrição de endividamento. Nosso histórico de alta inflação, controles cambiais e confisco não nos permite monetizar déficits;
3) gastamos mal. Dado o alto volume de gastos públicos, temos tido pouco sucesso na redução da desigualdade e da pobreza;
4) a expansão fiscal e o aumento da carga tributária das últimas décadas vêm prejudicando o crescimento.
Nosso sistema de proteção social e emprego é composto por programas sobrepostos e mal articulados. Gastamos cerca de 2,7% do PIB, em linha com países pares. Se desejamos aumentar esse valor, não podemos nos dar ao luxo de não rever o que já temos, incentivando a participação no mercado de trabalho formal e o aumento da produtividade.
Teremos que aceitar rediscutir programas como BPC e abono salarial, que não focam os mais pobres, e pensar como ampliar o mais eficiente, o Bolsa Família, criando mecanismos que incentivem a saída dele.
A dificuldade política dessa tarefa é enorme: basta lembrar que todas as mudanças propostas para o BPC, na reforma da Previdência, foram descartadas pelo Congresso. Estaremos dispostos a levar essas mudanças adiante em nome de financiar uma renda básica para todos?
A alta do desemprego será duradoura, e muitos trabalhadores não terão as habilidades necessárias para voltar ao mercado, cada vez demandante de mais escolaridade e tecnologia. A poupança compulsória via FGTS e o seguro-desemprego precisam ser reformulados, eliminando a excessiva rotatividade da mão de obra, que resultam da interação dos dois.
Com a Selic baixa, o financiamento do setor imobiliário pode prescindir da poupança compulsória dos trabalhadores. Há várias propostas elaboradas, nas quais a remuneração do FGTS converge para taxas de mercado e as multas rescisórias são destinadas a facilitar a inserção dos desempregados e a melhoria de sua qualificação.
Não só de ganhos de eficiência virão os recursos para financiar a expansão da assistência social discutida no Congresso. Falsas soluções, como o fim do teto de gastos ou a criação de novos impostos, derrubarão o que sobrou da confiança dos investidores.
Queremos um Plano Real da desigualdade? Urge, então, ao Executivo e ao Legislativo, primeiro, definir de onde sairá do dinheiro e tomar as providências para que, de fato, ele esteja liberado. Aprovar mais gastos dizendo que “depois a gente faz as reformas para arrumar o dinheiro” é a fórmula certa do fracasso.
É imprescindível avançar com privatizações e com as reformas engavetadas, como a administrativa e a tributária, que podem não só custear uma rede de proteção ampliada mas principalmente produzir ganhos de produtividade. Do ponto de vista da redução da desigualdade, é possível alcançar maior progressividade sem aumento de carga, enquanto a reforma administrativa altera benefícios apropriados por quem que está bem longe da pobreza.
A velha ideia de que gasto aumenta consumo, arrecadação e gera crescimento foi a essência da “nova matriz econômica” do governo Dilma. A conta ainda está sendo paga: baixo crescimento e aumento da pobreza.
Assistência social não é impagável, basta não recorrermos aos malabarismos econômicos fracassados.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 4/6/2020