O fato (histórico) de os jornais diários terem se firmado, ainda no século 19, como extensão de articulações partidárias que se enfrentavam na esfera pública tornou natural a classificação dos órgãos de imprensa segundo chaves próprias para a designação de correntes ideológicas. O “Estadão”, por exemplo, nasceu em 1875 – com o nome de “A Província de São Paulo” – com o objetivo declarado de promover as causas da abolição da escravatura e da República. Portanto, os adjetivos “abolicionista” e “republicano” davam conta de defini-lo, como se ele fosse um partido.
Com quase todos os jornais do século 19 foi assim: faziam proselitismo aberto, sem o menor embaraço (a reportagem era, naqueles primórdios, um acessório, um recurso a mais a serviço da propaganda das ideias). Por isso, exatamente como as agremiações partidárias, os diários se classificavam tranquilamente como republicanos ou monarquistas, nacionalistas ou internacionalistas, socialistas ou comunistas, conservadores ou liberais (os rótulos variavam – e ainda variam – conforme a cultura política de cada país). Mais recentemente, costumava-se dizer que os órgãos de imprensa são “de direita”, “de centro”, “de esquerda”. Com a maior naturalidade do mundo.
E hoje? Será que essa fórmula ainda funciona para entender a identidade e a vocação dos novos perfis dos órgãos de imprensa? Provavelmente não.
Não que as redações não tenham posições políticas. Elas as têm, mas isso é apenas parte do que representam e do que fazem. Fora isso, o modelo de classificação “esquerda/direita” acabou se relativizando até mesmo para a atividade política. A ordenação que se estende da esquerda para a direita na linha imaginária em que estariam dispostos os ideários disponíveis no debate público é, no mínimo, controversa.
No plano dos costumes, diz-se “de esquerda” quem defende, digamos, o casamento gay, enquanto os opositores dessa bandeira são vistos como gente “de direita”. Já no plano econômico, os adeptos do livre mercado (quanto mais sem Estado, melhor) são “de direita”; os entusiastas da estatização costumam ser carimbados como “de esquerda”. Num terceiro plano possível, aquele mais puramente político, os “de direita” gostam da gestão autoritária, autocrática; os “de esquerda” seriam mais “assembleístas”, devotos de sufrágios, plebiscitos e instâncias participativas em geral.
Mas a vida é mais complicada do que isso. Lembremos que, no Brasil, a mesma ditadura militar que suprimiu eleições, censurou a imprensa e sufocou o Congresso Nacional (era de direitíssima, portanto) estatizou a economia numa escala considerável, em índices quase soviéticos. Por outro lado, regimes ditos “de esquerda”, como o de Cuba, perseguiram os homossexuais com disciplina bolchevique, impuseram o regime do partido único e estatizaram totalmente a atividade econômica (hoje há recuos, muitos). Vemos, por aí, que a semântica mais convencional de “esquerda” e “direita” não ajuda muito a entender os propósitos dos agentes políticos.
Tentemos outra abordagem. A matriz de Norberto Bobbio, que pensa esquerda e direita em torno de dois eixos, liberdade e igualdade, talvez esclareça o cenário um pouco mais. Bobbio diz que a esquerda gosta mais da igualdade, em função da qual se disporia a sacrificar a liberdade, e que a direita prefere a liberdade (de iniciativa econômica, principalmente), abrindo mão, se necessário, do princípio da igualdade.
Mesmo assim, a coisa continua problemática. Segundo a matriz de Bobbio, o sujeito de esquerda é aquele que aposta, vejamos, na liberdade de organização sindical e na defesa dos direitos dos trabalhadores. Para ele, a liberdade seria um atalho rumo à igualdade. Acontece que esse mesmo sujeito fecha os olhos para o massacre da liberdade sindical que tem lugar nos regimes autodeclarados “de esquerda”, que juram defender a igualdade. Interessante: a mesma persona sindical que é festejada por plateias esquerdistas, no Brasil, é condenada como reacionária e pequeno-burguesa pelas mesmas plateias, em Havana.
Ora, se nem mesmo os agentes políticos podem ser bem explicados pela classificação “direita/esquerda” – principalmente no Brasil, onde as principais forças políticas, como PT, PSDB e PSB, se declaram mais ou menos “de centro-esquerda” -, por que esse modelo de classificação deveria servir para definir a marca essencial de um veículo jornalístico? Talvez o conjunto de convicções de uma empresa jornalística – que pode incluir a defesa de marcos regulatórios para o mercado de radiodifusão, do Estado laico e do mercado capitalista, por exemplo – possa ser suscetível de uma classificação nesses moldes, mas o âmago de uma redação contemporânea, aquilo que a define, vai além disso. Os editoriais de um jornal podem mostrar-se ultraliberais nos costumes (meio “de esquerda”) e conservadores na economia (“de direita”), sem problema algum. Isso não quer dizer que esse jornal esteja necessariamente a serviço de ONGs da causa gay ou de partidos direitistas. A imprensa, como objeto teórico, ganhou autonomia e não cabe mais nos escaninhos da política.
Sem dúvida, o jornalismo cobre a política. É seu dever. Mais ainda, é uma atividade essencialmente política, pois lida o tempo todo com o poder e com os direitos da cidadania. Mas um jornal não é (mais) a mesma coisa que um partido (quanto mais partidário, pior é) e sua qualidade não vem (mais) do fato de ele ser visto como “de direita” ou “de esquerda”. Vem, antes, da disposição que tem de refletir o pluralismo, da transparência com que expõe sua própria opinião, da sua independência e da capacidade que demonstra de investigar a fundo os assuntos que reporta. Aí está o núcleo da identidade (e da qualidade) de um órgão de imprensa – e esse núcleo não é meramente “de esquerda” ou de “direita”, ainda que muitos se tenham acomodado a essa visão reducionista.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 20/03/2014
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