Desde meados da década de 90, os arcabouços monetário e fiscal têm evoluído no Brasil em ritmo muito desigual. Enquanto o BC (Banco Central) —a partir da adoção do câmbio flutuante e do regime de metas de inflação— passou a ter um objetivo claro e a ser responsabilizado por suas decisões, a condução da política fiscal, apesar de evoluções como a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a regra do teto de gastos, é bastante frágil.
Os freios e contrapesos para arroubos fiscais estão bem menos institucionalizados do que deveriam estar.
A palavra “transparência” assume significados diferentes para as autoridades monetárias e fiscais. Para o BC é um meio para um fim: quanto melhor o público entender e antecipar as escolhas da política monetária, mais as expectativas estarão ancoradas nas metas, e maior será sua eficácia.
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Já nas matérias fiscais, o termo “transparência” tende a significar a adoção de princípios contábeis geralmente aceitos e a condução da política dentro das regras do momento. Não parece ser prioridade ajudar o público a formar expectativas sobre as trajetórias futuras dos gastos e tributos, muito menos sobre a forma como as regras e a dívida pública são sustentáveis ao longo do tempo.
Nada mais exemplificador do que o momento atual.
Diante de uma inflação que se mostrou muito mais persistente do que julgava, o BC acelerou o ritmo de alta da Selic e endureceu seu discurso para retomar sua credibilidade. Se a autoridade monetária perder o teto da meta pelo segundo ano consecutivo em 2022, terá um árduo trabalho para esclarecer como atingi-la de 2023 em diante.
Já no que tange à chamada “chuva de meteoros” dos precatórios e à intenção de mais do que dobrar o Bolsa Família, não vemos compreensão sobre as causas do temor suscitado nos mercados nem ações para evitá-lo. O pensamento é simplista: se a arrecadação está “bombando” e as regras até o momento estão sendo mantidas, tudo não passa de especulação ou ruído eleitoral.
Grave engano. O compromisso de consolidação das contas públicas está sendo seriamente questionado.
Para acomodar o Bolsa Família turbinado, despontam ideias como a criação de um fundo “extrateto” ou a retirada dos precatórios do teto de forma retroativa, abrindo um espaço arbitrário no teto. O novo programa social também coloca em risco a LRF, uma vez que não se sabe ao certo se a fonte de recurso da nova despesa (tributação dos dividendos) será aprovada pelo Congresso.
Concomitantemente, a reforma tributária surge tão apenas para permitir o reajuste da tabela do imposto de renda e encontrar a forma de financiar o novo Bolsa Família. Pouco parece importar a provável redução da carga tributária federal resultante das negociações. Enquanto as metas de inflação não estão sujeitas a mudanças por uma questão de conveniência, as metas de primário perderam sua razão de ser.
E a questão continua: como a dívida de um país que tem um potencial de crescimento menor do que sua taxa de juro real pode se estabilizar sem resultados primários?
Em alguns momentos, aqueles que deveriam prezar pelas regras e metas revelam não entender o que elas significam. Se a arrecadação está R$ 200 bilhões acima do valor previsto, nós temos os recursos do Bolsa Família, dizem. E o teto? E a LRF? Da mesma forma, o envio de um Orçamento, que não considere as discussões já públicas será visto apenas como peça de ficção e não tranquilizará os mercados, como se supõe.
De um lado, a incerteza sobre o sistema tributário paralisa as decisões de poupança, investimento e consumo. É só uma questão de tempo para a arrecadação dar sinais de fadiga e a culpa ser atribuída aos juros mais altos.
De outro lado, a falta de confiança na consistência intertemporal dos gastos públicos traz de volta o temor da dominância fiscal. Considerando-se o alto estoque da dívida, o encurtamento de seu prazo e uma parcela cada vez maior indexada à taxa de curto prazo, os aumentos na Selic podem acabar gerando indagações sobre sua solvência. A percepção de risco do país se eleva, o câmbio sofre depreciação, e a inflação sobe. A política monetária, de repente, se torna contraproducente.
De nada adiantará um Banco Central autônomo se o arcabouço fiscal continuar frágil e sujeito aos ciclos eleitorais. Infelizmente, não há lei que torne a política fiscal autônoma. O que se pode esperar é que os responsáveis pela sua execução estejam em alerta e deem as sinalizações adequadas para a sociedade.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 25/08/2021
Foto: Reuters