*com Sandro Cabral
São inegáveis os avanços observados pela Justiça brasileira ao longo dos últimos anos. Temos hoje um Poder Judiciário mais independente dos interesses de grupos políticos, mais acessível à população (como no caso dos tribunais de pequenas causas), com maior grau de transparência nos trâmites processuais (algo facilitado pelas novas tecnologias da informação) e com maior leque de opções para mediação de conflitos.
Após a Constituição de 1988, o Ministério Público passou a gozar de maior autonomia para exercer suas funções de defensor dos direitos coletivos, fiscal, advogado e ouvidor da população. Fruto desse padrão de evolução, juízes, procuradores e promotores puderam deflagrar de forma coordenada com outros órgãos a maior e mais efetiva ação de combate à corrupção da história brasileira: a Operação Lava Jato. Entre erros e acertos, a iniciativa tem mudado as tradicionais (e disfuncionais) formas de relacionamento entre empresas e políticos.
No entanto, apesar da importância desses atores para a revelação e punição de desvios, ainda assistimos a acalorados debates sobre a necessidade de membros do sistema de Justiça prestar contas de seus atos à sociedade e acerca dos elevados salários de magistrados, procuradores e promotores.
Naturalmente, a simples menção a esses temas é vista pelas corporações que representam os interesses do sistema jurídico como estratagemas para impedir as investigações sobre crimes cometidos por políticos e empresários. Em outras palavras, de acordo com sindicatos de juízes e promotores, o clamor para que membros do sistema de Justiça prestem contas à população seria um ardil de grupos interessados na perpetuação dos malfeitos. Discordamos dessa visão e acreditamos que tais distorções precisam ser enfrentadas justamente para assegurar que juízes e promotores cumpram seu efetivo papel na sociedade e sejam reconhecidos como tal.
Em nossas conversas com colegas estrangeiros, sempre temos dificuldades em explicar por que indivíduos que deveriam promover a justiça em todos os sentidos são justamente aqueles que legitimam, por meio de salamaleques jurídicos, salários completamente descolados da realidade.
Sob a ótica das contas públicas, a situação é ainda mais temerária por causa do efeito em cascata gerado, na medida em que outras categorias do funcionalismo passam a pressionar, muitas vezes em tom de chantagem, os governantes de plantão por maiores salários e benefícios, numa espécie de gincana perversa que mina ainda mais os cofres públicos. É preciso coibir a proliferação de adicionais nos contracheques e buscar tetos críveis aos gastos com funcionários públicos de todos os Poderes. Nesse sentido, a proposta de emenda constitucional colocando limite de gastos não apenas é bem-vinda, como deveria ser apoiada, e não combatida, por grupos de interesse do sistema jurídico.
De forma ainda mais ampla, é inadmissível que agentes públicos, eleitos ou não, se coloquem acima do interesse dos cidadãos e resistam aos freios e contrapesos necessários em qualquer democracia desenvolvida. Os órgãos de fiscalização de condutas, tais como as corregedorias, devem ser imunes a pressões corporativistas. Infelizmente, é pouco provável que isso aconteça caso tais organismos sejam compostos em sua maioria por membros da mesma categoria, caso as informações sobre as investigações não sejam amplamente publicizadas e caso as comissões de apuração não sejam altamente especializadas, independentes e imunes a pressões de qualquer tipo. Nesse sentido, transparência e monitoramento externo são essenciais para a preservação do interesse público.
Certamente, o avanço contínuo das nossas instituições exige um sistema de justiça robusto e independente. Mas, para tal, é preciso também que nossos guardiães estejam sujeitos aos interesses da sociedade, e não o contrário. Conciliar autonomia com responsabilidade é um objetivo que eles próprios deveriam buscar e defender.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 27/08/2016.
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