Por Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli
“Autoridades eleitas pelo povo, mais do que quem é nomeado presidente do Banco Central, deveriam ter a palavra final na formulação da política monetária. O Banco Central tem autonomia operacional, e achamos que a economia – e a questão monetária é parte da economia como um todo – precisa ser dirigida por aqueles que são eleitos. Eu sou contra a autonomia formal do Banco Central”. Esta declaração, feita em maio último por Rui Falcão, presidente do partido dos Trabalhadores, é representativa do pensamento de políticos e economistas de esquerda sobre o tema.
Tem razão Rui Falcão ao afirmar que os tecnocratas do Bacen não têm delegação popular para decidir qual deve ser a taxa de inflação do país. A taxa de inflação equivale a uma alíquota de tributação sobre a moeda mantida no bolso pelos cidadãos. Numa sociedade democrática, questões envolvendo tributação devem ser decididas pelos representantes eleitos. A decisão sobre qual é a meta de inflação a ser atingida, bem como a faixa de tolerância em torno dela, é uma decisão política. Como tal, só pode ser tomada por quem teve voto. A questão da independência do Bacen se coloca somente após essa decisão: quem, melhor que os tecnocratas de um Bacen independente, poderá transformar em realidade o cumprimento daquela meta democraticamente definida pelos representantes do povo?
Se a diretoria de um Bacen independente recebesse a missão de cumprir uma meta de inflação definida por representantes eleitos pelo povo, ela teria enorme força política para implantá-la. Diante de pressões de curto prazo para baixar os juros, ela teria que receber daqueles mesmos eleitos pelo povo uma categórica contra-ordem. Neste caso, os jornais apresentariam suas manchetes: “Presidente determina ao Bacen que desista de combater a inflação”. Nas eleições seguintes, os eleitores decidiriam, democraticamente, pela substituição, ou não, de seus representantes.
O que se ganha com a independência do Bacen é a blindagem de sua diretoria contra pressões políticas, algo que se observou recentemente no Brasil, tendo levado a uma política monetária tolerante em relação à inflação. Hoje, diante da frequente interferência do Executivo, os agentes econômicos esperam o pior, o que estimula remarcações preventivas de preços, dificultando a tarefa da autoridade monetária. Em essência, a autonomia formal do Bacen aqui defendida seria análoga àquela que rege as agências reguladoras, cuja atuação é definida pelas Leis Complementares que as criaram.
Curiosamente, os mesmos críticos da independência do Banco Central defendem a ilimitada autonomia hoje concedida ao BNDES. Desde a crise dos subprime em 2008, o Tesouro transferiu ao banco mais de R$300 bilhões. Trata-se de algo próximo a um orçamento paralelo, pois a destinação dos recursos segue prioridades definidas pelo próprio BNDES, além do fato de a magnitude do subsídio e sua distribuição não serem divulgados devido ao sigilo bancário. O Poder Legislativo limita-se a aprovar os repasses do Tesouro ao BNDES, que os utiliza segundo prioridades e políticas decididas internamente sem muita discussão e/ou prestação de contas à sociedade. Esta liberdade de ação é muito superior àquela concedida aos bancos centrais independentes ao redor do mundo.
A opacidade quanto aos critérios de alocação definidos pelo próprio BNDES salta aos olhos. Porque o banco resolveu financiar de forma tão decidida o setor de carnes, por exemplo, concentrando seus financiamentos em poucas empresas? Não se conhece qualquer documento mais profundo sobre esta diretriz, muito menos alguma explicação mais embasada para os R$250 milhões investidos em um frigorífico que faliu apenas três meses depois de receber estes recursos. Não se conhecem avaliações rigorosas do conjunto de políticas do banco. Dado o diferencial de 6% ao ano entre a taxa de captação do Tesouro – SELIC, ou NTNB – e a TJLP, pode-se estimar em pelo menos R$20 bilhões anuais o volume de subsídios distribuídos pelo banco, sem escrutínio adequado.
A taxa de investimento do país pouco mudou durante a fase de crescimento dos citados aportes do Tesouro. Em princípio, é possível que um estudo rigoroso com dados claros e acessíveis a todos os interessados possa convencer analistas econômicos de que, na ausência daqueles empréstimos, a situação do investimento estaria ainda pior. Entretanto, em que pese a competência de seu corpo técnico, o banco não produziu qualquer avaliação que vá além de generalidades – “criamos X empregos, financiamos Y empresas”. Não há números, simulações ou estimativas rigorosas do retorno líquido dos financiamentos do banco, nem dos usos alternativos para aqueles fundos.
Combater a independência do Banco Central, e simultaneamente apoiar a ilimitada independência do BNDES, refletem uma visão de mundo. Governantes gostam de exercer discricionariamente o poder, embora em geral regras claras e estáveis gerem melhores resultados. A maior liberdade de ação nos dois casos permite ao governo, no curto prazo,
implementar as políticas que julga mais apropriadas. Entretanto, a inflação acima da meta, mesmo com controle de importantes preços administrados, e o baixo crescimento, mesmo com a explosão do crédito público, mostram que no médio e longo prazo este excesso de flexibilidade nas mãos do governo central não tem funcionado.
Fonte: Valor Econômico, 16/07/2014
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