Desde sábado corre na imprensa a notícia de que o mordomo de Roseana Sarney recebe um salário de R$12 mil do Senado. Também correm as notícias dos atos sigilosos do Senado, assim que como correram a farra das passagens e o mensalão. São coisas que causam justa revolta. Mas vamos juntar isso com um outro dado.
Conheço muitas pessoas que estudam ou estudaram para concursos públicos. Sem recriminá-las — até porque eu creio que existem funções legítimas e necessárias do Estado, e é melhor que sejam desempenhadas por pessoas boas e qualificadas — , não posso deixar de observar que, de modo geral, seu objetivo, como o dos demais concurseiros, era obter a segurança, a estabilidade e a boa remuneração do cargo. Isto é, seu objetivo era antes receber do que dar; mesmo que elas todas trabalhem dignamente, não me parece que estejam realizando uma vocação que encontra no serviço público seu ambiente ideal. Em todas as vezes que tentaram convencer-me a estudar para um concurso, foram ressaltadas as benesses do cargo. Que boa parte das pessoas considere inteiramente natural que privilégios sejam conquistados por concursos é coisa que me admira e que me faz até crer em sua legitimidade; eis, afinal, a famosa vontade popular.
O que me põe a pulga atrás da orelha é ver como essa crença na naturalidade dos privilégios adquiridos se junta à revolta contra as passagens dos deputados e o mordomo de senadora. Servidores concursados e eleitos são pagos com o mesmíssimo dinheiro dos impostos. Por que não se faz cara feia quando, à mesa com familiares e amigos, alguém anuncia as vantagens do cargo para o qual está estudando, mas há revolta quando se descreve ou descobre as benesses de que desfrutam os deputados e senadores?
Pergunto-me também se essa atitude não está associada a outras. Quem mora no Rio de Janeiro sabe que o estilo carioca de dirigir dá novos sentidos à famos frase de Sartre: “o inferno são os outros”. O motorista que fecha o cruzamento é o mesmo que se revolta com o cruzamento fechado por outro motorista. O motoqueiro que bate no retrovisor do seu carro sequer pára para ver o que aconteceu — e obviamente ele sentiu o baque mais do que o motorista do carro. É difícil crer que o vizinho que faz barulho e atira coisas pela janela e pelo vão central do prédio (moro no segundo andar, e tendo a crer que do terceiro em diante praticamente só há hooligans) queira ouvir barulho e ver lixo caindo dentro de sua casa.
Tudo isso denuncia não apenas a descrença no bem comum como, num nível muito menos abstrato, o desrespeito pelo outro que está a seu lado. O motorista que fecha o cruzamento pode enxergar as pessoas de cuja vida roubará alguns minutos. O vizinho que joga coisas e faz barulho encontra o outro vizinho no elevador. O concurseiro que só quer benesses está atrás do dinheiro dos impostos pagos por muita gente que ele não conhece, mas também do dinheiro dos seus amigos e parentes.
Diante disso, já é possível ouvir o contra-argumento: “faço porque todo mundo faz”. Se ninguém respeita o outro, e sequer tem idéia do bem comum, então respeitar o outro e fazer pequenos sacrifícios (para nem falar de grandes) em nome do bem comum significa ficar em séria desvantagem. Mas, sem nem mesmo recorrer à moral religiosa, basta recordar o que diz Sócrates no diálogo Górgias, de Platão: “É melhor sofrer a injustiça do que praticar a injustiça”. A má conduta alheia jamais deve ser usada para justificar a má conduta própria. Talvez ela seja um atenuante, mas só. De todo modo, permanece no fundo a motivação de apenas receber e nunca dar.
Por isso, retomando o assunto principal, proponho a seguinte pergunta: como poderia alguém que abertamente se declara interessado apenas nas benesses de um cargo público repreender aqueles que recebem benesses maiores? A diferença é apenas de grau, não de substância. Se fosse necessário entender melhor e mais especificamente essa revolta, não seria necessário distinguir entre a justa indignação por um abuso e a inveja de quem só espera conquistar o direito a certas benesses?
(Publicado em OrdemLivre.org)
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