Pode-se matar por engano ou boçalmente, como na guerra e nos radicalismos, mas na morte não há erro. Sem ter retorno ou reparo — ela simplesmente é
A semana passada me surpreendeu com inesperados. O inesperado é o latente. Aquilo que se cobre com a capa das coisas claras e planejadas mas resulta no seu oposto. A sovinice que arquiteta riqueza, a dificuldade legal manifesta para promover a propina latente da facilidade, o sublime socialismo que tem como alvo distribuir riqueza, mas que detesta opiniões divergentes.
A morte visitou-me atingindo pessoas que eu admirava. É curioso constatar que, apesar de a morte ser o mais óbvio axioma da vida — pois só morre quem vivo está —, ela continuamente nos surpreenda.
Seu incômodo poder decorre de incontáveis latências. A maior delas sendo talvez o modo como a morte inapelavelmente demonstra a nossa finitude. Esse bonito nome para a brutal concretude com a qual os nossos esbirros de onipotência e as nossas fantasias de permanência são negadas.
Haja, pois, espanto quando ela aparece. Vivê-la como algo inesperado é, suspeito, um modo de acolhê-la, porque são raros os que aceitam o seu convívio e milagrosos os que não são por ela contaminados.
Representada como um esqueleto coberto por uma mortalha — uma entidade descarnada, absolutamente impessoal e dona de uma igualdade objetiva, pois os ossos canibalizam caras e bocas, a morte é prova da separação entre o aquilo que possui a mais profunda significação (é o fim de tudo o que almejamos), ao mesmo tempo em que desfruta do nosso mais integral desconhecimento. Sentimos a morte, mas não a experimentamos ou conhecemos. Não sabemos como e o que ela é. Dela temos a experiência exterior, pois para conhecê-la por dentro teríamos que morrer e, neste gesto sem retorno, renegaríamos a vida: esse engenho inesgotável do saber e do conhecimento. Por isso, os mortos queridos nos espantam na sua imobilidade de pedra. Como não reagem aos nossos soluços? Como não ouvem o que ainda temos para pedir ou contar? A morte rompe relações.
Na minha vida, que já vai longa, vi muitas mortes e vivi o absurdo de enterrar quem — pela frágil lógica humana — eu esperava que fosse me sepultar.
Mas haveria alguma morte fora de hora, quando sabemos ela é o sinal de que “chegou a nossa hora?.” Pode-se matar por engano ou boçalmente, como na guerra e nos radicalismos, mas na morte não há erro. Sem ter retorno ou reparo — ela simplesmente é.
Mesmo esperada, a morte surge como um inesperado, como foi o caso do tio de amigos queridos, falecido no mesmo dia em que o laureado jornalista Jorge Bastos Moreno — para quem, envolvido pela sua conhecida simpatia, escrevi o prefácio do seu livro “A história de Mora; a saga de Ulysses Guimarães” — também partia. Neste pequeno texto eu enfatizo o modo com o qual ele recontava fatos públicos do ponto de vista de uma mulher, a dona Mora, que, como Penélope, esperava e via com mais clareza as peripécias do herói.
Como os dois sepultamentos ocorreram no mesmo dia, fui obrigado a uma cruel escolha. E certamente por causa disso, relembrei no velório do qual participei que tudo na vida social tem um lado manifesto e um outro latente. O morto é explicita e ritualmente pranteado, mas alguém tem que providenciar o cemitério, a sepultura, o caixão e a vestimenta. O triste adeus de uma despedida, entretanto, promove encontros benfazejos com velhos e novos amigos.
O escritor inglês G. K. Chesterton chamava isso de “trabalho do morto”; um outro inglês, o antropólogo A. R. Radcliffe-Brown dizia que o sepultamento era o inicio da recomposição da teia social ocupada pelo morto. Robert K. Merton, um brilhante sociólogo americano hoje esquecido, sugeriu, inspirado em Max Weber, que toda instituição social tem uma “função manifesta”, geralmente expressa nos seus estatutos (a ética protestante) e uma “função latente” (o espirito do capitalismo), a qual surge como um inesperado e muitas vezes como ironia ou paradoxo de dentro dos seus contornos sociais.
A morte fez apreciar o Moreno, como um jornalista-profeta. Não o que advinha, mas o que diz o que os poderosos não gostam de ouvir porque foi escrito num tom inesperadamente latente — no limite da ironia e do politicamente correto. A função manifesta do jornalismo é estampar fatos. A latente, é comentá-los. O modo como isso é feito separa o fofoqueiro do profeta que, ao lado do palácio real, prega uma jeremiada nos barões-ladrões.
Tal como acontece na morte, os políticos se elegem manifestamente para governar, mas o seu objetivo latente é roubar ou arrumar-se. Eis uma tese, mas sua demonstração, como diria um outro inglês, é uma outra história…
Fonte: “O Globo”, 21/06/2017
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