Irresponsáveis tentam vender a ideia de forte repique inflacionário a partir dos combustíveis
Uma carcaça de boi no meio de um pasto seco foi uma das estrelas da TV nos primeiros meses do Plano Real, quando a inflação começava a se acomodar em níveis quase civilizados. A imagem reapareceu várias vezes, durante algum tempo, ilustrando reportagens sobre o preço da carne. Para os mais informados, ou simplesmente mais desconfiados, o noticiário sobre os estragos causados pela seca eram exagerados. A desconfiança era justificada. Os preços dos bois – e da carne – subiram por algum tempo e em seguida entraram numa longa queda. Demorou um pouco, mas os fatos se impuseram ao mercado. A inflação da carne, tão bem vendida aos expectadores com a imagem sinistra de uma carcaça, ou até de algumas, acabou mudando de sinal e se convertendo em queda de preço.
Na década anterior, uma nova doença havia atacado algumas plantações de trigo no Paraná. O noticiário cresceu. Em pouco tempo já se mencionavam sinais do estrago em todo o Estado e, logo depois, na maior parte da Região Sul. Quebra de safra? Nada disso.
Em reunião com um grupo de assessores de imprensa de várias cooperativas, um jornalista da área, pouco disposto a engolir qualquer vigarice, fez a pergunta inevitável. Os assessores confirmaram, rindo de forma despudorada, a desconfiança do repórter. O problema nos trigais era muito menos amplo do que se divulgara. A manobra toda era um tanto grotesca. Dificilmente afetaria o mercado e seria preciso algo muito mais substancioso para induzir o governo a aumentar o preço mínimo para aquela safra. Mas como resistir à tentação?
Sempre houve, e ainda há, jornalistas e órgãos de comunicação empenhados em tratar a inflação e outros temas delicados com responsabilidade, cautela e alguma desconfiança, assim como há organizações e profissionais menos presos a essas preocupações. Há uma distância enorme entre apontar pressões inflacionárias presentes, ou ainda prováveis, e produzir material terrorista. Alimentar expectativas de altas de preços é criar condições para aumentos efetivos. Se o reajuste é apresentado como praticamente certo, pode-se induzir o consumidor a aceitar mais facilmente qualquer ação especulativa. Mesmo sem terrorismo sempre há espaço para alguma especulação. Isso tem ocorrido, normalmente, quando se anuncia qualquer aumento dos combustíveis. O reajuste inicial, nos postos de serviços, é quase sempre exagerado. Em alguns dias, no entanto, os preços se acomodam.
O estrago pode ser muito maior – e muito mais duradouro – quando poderosos meios de comunicação anunciam enormes efeitos inflacionários de um reajuste do PIS-Cofins cobrado sobre os combustíveis. Predições desse tipo ocorreram nos últimos dias.
Começaram quando o governo federal informou a intenção de elevar tributos para preservar a meta fiscal deste ano. Com arrecadação ainda fraca e muita incerteza quanto a receitas especiais programadas, como as do novo Refis, os ministros da Fazenda e do Planejamento decidiram buscar mais dinheiro por meio de maior tributação. Haviam prometido evitar esse caminho enquanto pudessem, mas o espaço de escolha diminuiu, embora os números de junho tenham refletido a incipiente recuperação da atividade em alguns setores.
É fácil para qualquer órgão informativo mostrar a insatisfação dos consumidores diante de um aumento de imposto com reflexo imediato nos preços. Também é fácil, embora um tanto grotesco, entrevistar consumidores num supermercado sobre expectativas de repasse daquele aumento aos preços finais do varejo. Economistas do mercado, muito mais experientes e mais equipados para estimar efeitos desse tipo, já haviam revelado suas primeiras avaliações.
De modo geral, os cálculos indicavam impacto moderado na taxa final de inflação neste ano. Ao apresentar a revisão bimestral de receitas e despesas, na sexta-feira, o governo incluiu nos parâmetros macroeconômicos uma inflação prevista de 3,7% em 2017. Pode-se discutir se esse número foi deliberadamente subestimado.
Se esse tiver sido o caso, o governo terá tomado um risco muito estranho, por ser incompatível com o esforço para preservar sua credibilidade e a confiança do mercado no esforço de ajuste da economia. Números indicados um dia antes por economistas do mercado, no entanto, haviam confirmado a expectativa de inflação ainda moderada neste ano. O ponto mais contestável do conjunto de parâmetros foi a manutenção de 0,5% como crescimento esperado para o produto interno bruto (PIB). A maior parte das projeções correntes tem ficado mais perto de 0,3%.
A reafirmação da meta fiscal deste ano, um déficit primário de no máximo R$ 139 bilhões, é parte de uma política voltada para a retomada do crescimento econômico, tem repetido o ministro da Fazenda. A arrumação das contas públicas, segundo ele, é condição para um crescimento mais veloz e mais seguro do PIB. Isso faz sentido, se a arrumação for considerada como condição para um gasto público sustentável – e mais eficiente – e para a melhora da classificação de risco do País. Melhor classificação envolve crédito mais fácil e mais barato e maior atração de capitais. Além disso, finanças públicas em condições de equilíbrio de longo prazo resultam em menores pressões inflacionárias e em juros mais baixos.
Se as novas decisões de política econômica estiverem basicamente erradas, ou mal formuladas, isso será verificado antes do fim do ano. Mas um ponto já é bastante claro: criticar seriamente a política econômica é muito diferente de criar de forma gratuita expectativas inflacionárias. Talvez esse tipo de crítica esteja de fato interessado em atingir o governo, talvez o presidente da República. Mas também quanto a isso convém estabelecer uma distinção. Fazer oposição ao governo, ou mesmo campanha contra um governante, é muito diferente de tentar criar um ambiente inflacionário. A inflação atinge todas as pessoas, e mais duramente as mais pobres. Isso é terrorismo.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 23/07/2017
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