Chegar aos 18 anos para tirar carteira de motorista e, talvez, ter o próprio carro. Durante décadas esse foi o maior clichê entre os jovens. No entanto, tudo nos leva a crer que essa relação com os automóveis está com os dias contados.
Ter o próprio carro significa pagar IPVA, seguro, estacionamento, gastar com manutenção, combustível e, em alguns casos, o aluguel da garagem. Com a chegada dos carros de aplicativo, aliada a lei seca e a dificuldade de achar vaga de estacionamento nos grandes centros urbanos, deixar o carro em casa tornou-se algo muito comum.
A tendência é que as novas gerações tenham uma relação completamente diferente com o carro. Caminhamos para uma transformação na relação de consumo desse bem, trazendo muito mais para o lado de ter uma necessidade atendida, do que do carro como uma extensão da personalidade de seu dono. O desejo de possuir o próprio carro vem sendo substituído pela necessidade de mobilidade conveniente.
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Para entender como as inovações podem ser responsáveis por essa mudança de paradigma, é preciso falar de MADE, um acrônimo para Mobilidade, veículos Autônomos, Digitalização e Eletrificação.
Na mobilidade, temos o exemplo já citado dos carros de aplicativo, o carsharing [modelo de compartilhamento de carros por meio de aluguel], que no Brasil já é uma realidade consolidada.
Quando falamos de veículos autônomos [que não precisam de motorista], há um crescimento, muito impulsionado pela pandemia e aliada ao carsharing, do desejo do usuário de não compartilhar o carro com outra pessoa (motorista).
“Eu não quero outro ser humano lá dentro por questões de saúde, relacionados à pandemia, e um carro autônomo viabiliza isso, porque tem tecidos antimicrobianos e filtros de ar. Você entra em um carro praticamente novo, que vai te levar de A até B, com todo o conforto, sem ser necessariamente uma solução de transporte coletivo do modelo que conhecemos hoje”, explicou Marcus Ayres, sócio-diretor da Roland Berger, líder da prática industrial para a América Latina. Ouça o podcast!
Além da saúde, existem muitas outras conveniências nos veículos autônomos, como a melhoria do tráfego, a redução do tempo de deslocamento e a segurança.
A digitalização ocorre em toda a linha de produção, com destaque para as inovações no produto. Para Marcus Ayres, na próxima década os carros ganharão status de computadores sobre rodas. “Ele tem dispositivos que medem absolutamente tudo dentro do carro. Interage muito mais com o motorista, com o ambiente, e vira uma central de comunicação e processamento”, contou.
A última letra do acrônimo, a eletrificação, é uma inovação muito importante, não só pela questão ambiental, mas por mudar a forma como o carro é construído. Atualmente, o que está disponível no mercado são carros híbridos. “Temos um carro elétrico e um carro à combustão. Então, temos o dobro do custo, o dobro da complexidade. É um modelo de transição, mas não é, definitivamente, um modelo final”, explicou.
Rumos da inovação no Brasil
Temos no currículo uma tradição de inovação no setor automobilístico. A criação de veículos flex, que hoje prevalecem nas ruas, é coisa nossa e ganhou o mundo. “O Brasil tem essa tradição. Eu lembro o Gurgel levando o seu veículo elétrico para apresentar no Programa Silvio Santos, na década 1980, 1970, não lembro. A inovação está no DNA da indústria brasileira”, opinou.
Apesar do perfil inovador da indústria nacional, alguns pontos podem ser cruciais na concretização de certos aspectos do MADE. “Talvez a realidade dos veículos autônomos se torne tangível no Brasil nessa década. Mas, obviamente, nosso país tem desafios muito importantes para isso. Falamos de veículos autônomos aqui, mas ainda temos uma enorme parte da sua malha viária não pavimentada”, pontuou Marcus.
Do ponto de vista da eletrificação, há o problema logístico de recarga desses veículos, o que pode inviabilizar ainda por um tempo os carros de passeio. A eletrificação começaria pelas frotas comerciais. “No caso dos veículos comerciais, os caminhões, principalmente, é muito mais fácil porque as rotas são determinadas. Podemos ter os postos de recarga nos centros de distribuição e isso não afetaria a dinâmica da logística”, argumentou.
A saída da Ford do Brasil, assunto que movimentou a mídia na última semana, está intimamente relacionada à essa questão. Há cerca de 3 anos, houve um anúncio global sobre uma importante mudança no posicionamento da marca: a empresa decidiu se dedicar aos SUVs e veículos elétricos.
Para Marcus Ayres, as duas questões estão intrinsicamente ligadas à essa tendência de inovação. “É muito mais fácil você embarcar a digitalização em uma plataforma de 200 mil reais, que é o preço de um SUV do porte da Ford Ranger, do que você embarcar numa plataforma de 50, 60 mil reais, que é o que custa um Ford Ka, um Fiesta”, opinou.
Os próximos 10 anos serão de muita inovação no setor automobilístico. Caso o Brasil não acompanhe, ficaremos para trás. Mesmo com uma indústria acostumada a ter relevância no cenário global, as novas demandas do mercado não irão parar para que o Brasil se adeque e pegue o rumo das inovações tecnológicas. A hora para começar é agora.