Temos vivido nos últimos tempos na América Latina situações de insegurança jurídica que colocam a democracia em perigo, mesmo onde ela é apenas uma aparência, como na Venezuela. No Brasil, à medida que surgem grupos políticos à frente de outros poderes colocando em dúvida a capacidade do Supremo Tribunal Federal de ser a última instância na definição do que é ou não constitucional, passaremos a fazer parte de um grupo de países que seguem a Constituição de acordo com suas conveniências políticas.
O fato de que qualquer dos candidatos à presidência da Câmara não pode admitir que cabe ao Supremo a última palavra sobre a perda dos mandatos dos parlamentares condenados no processo do mensalão é sinal de fragilidade de nossas instituições, mesmo que o mais provável seja que qualquer um deles, eleito, mudará de posição para evitar uma crise institucional. Pelo menos, essa é a torcida.
Outra situação curiosa é a do Fundo de Participação dos Estados (FPE), que deveria ter sido alterado pelo Congresso até o último dia do ano passado, de acordo com decisão do Supremo de três anos atrás. Nada foi feito, e agora todos estão torcendo para que ninguém mexa no assunto a fim de deixar tudo do jeito que está. No dia 10 de janeiro (coincidência de datas para crises institucionais aqui e na Venezuela, como veremos adiante), o Tesouro Nacional tem que fazer os repasses das verbas para estados e municípios, mas corre o risco de estar cometendo uma ilegalidade.
O advogado-geral da União se encontrou ontem com o presidente do STF, Joaquim Barbosa, para sondá-lo a respeito do que fazer. Mas tudo de maneira informal, pois, se o Supremo for instado a opinar oficialmente, cria-se problema gravíssimo de falta de dinheiro na maioria dos beneficiários desses fundos. Como o STF é um poder que age só se provocado, não tem que sustar o pagamento. Mas todo mundo sabe que ele não deveria acontecer. Todos fingirão não estar vendo a burla, na esperança de que a crise institucional desapareça por encanto.
Da mesma maneira, nossa política externa dá sinais de que toma decisões com base em interesses políticos regionais, como agora com a situação da Venezuela. Um curioso caso de autogolpe está em desenvolvimento naquele país sem que nenhum passo tenha sido dado para evitar que o mais recente membro do Mercosul fira a cláusula democrática. Impossibilitado de comparecer à Câmara para tomar posse do novo mandato, a 10 de janeiro, o presidente Hugo Chá-vez, internado em Cuba e aparentemente em estado terminal, pode continuar presidindo o país sem mesmo saber o que está acontecendo, graças a uma manobra que seus seguidores estão armando na Venezuela. E por que os chavistas temem enfrentar o futuro sem a presença física de seu líder?
Não parece provável que a oposição tenha condições de vencer as próximas eleições, mas, ao que tudo indica, as forças chavistas não estão suficientemente unidas para enfrentar as urnas. A oposição venezuelana é parecida com a brasileira, é organizada eleitoralmente quando se trata de eleição para presidente, mas não tem capacidade de atuação política congressual.
Na Venezuela, a oposição teve boa votação na última disputa presidencial com Henrique Caprilles, para em seguida perder em 20 dos 23 estados. A ausência física de Chavez em uma eventual eleição não deve favorecer a oposição, mas os chavistas tentam adiar ao máximo esse desfecho fazendo interpretações mirabolantes de uma Constituição aprovada por eles mesmos. Ao contrário do Brasil, onde a maioria dos juízes foi indicada pelos governos petistas e demonstrou independência, na Venezuela a Suprema Corte é dominada pelo chavis-mo e segue à risca suas orientações.
Tudo parece indicar que, diante da realidade de uma ausência permanente do líder, as diversas alas do bolivarianismo se debatam internamente, prenunciando o início do fim do movimento que dominou o país nos últimos anos. Enquanto não forem obrigadas a encarar a realidade, querem fingir que o “Comandante” continua no poder. E seu sucessor escolhido, o vice-presidente Nicolas Maduro, ficará no poder “de facto” para disputar a eleição “no cargo” visto pelo eleitorado como o novo Comandante. E a Constituição que se dane.
Fonte: O Globo, 08/01/2013
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