Submissão a principismos e a dogmas, como não cumulatividade e extração pelo método do valor agregado, constitui prática que vem mutilando o sistema tributário brasileiro. Vou lembrar alguns episódios recentes.
Caso 1: onda fundamentalista, na Assembleia Constituinte de 1988, proclamou a necessidade de liberar os Estados na fixação das alíquotas do ICMS sem cuidar, por imperícia, de vedar a redução de base de cálculo. Consequência: em contraste com a então vigente alíquota única do ICM, passamos a ter algumas dezenas de alíquotas efetivas do ICMS.
Caso 2: na mesma Assembleia Constituinte, em nome da não cumulatividade, procedeu-se à incorporação dos impostos únicos federais sobre energia elétrica, combustíveis e lubrificantes, transportes, telecomunicações e minerais ao ICM (hoje ICMS).
Consequência: essas bases imponíveis representam hoje cerca de 48% da arrecadação nacional do ICMS, gerando perigosa dependência para as finanças estaduais, e, como lembra Delfim Netto, substituindo a vinculação a investimentos por custeio.
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Caso 3: a Lei Kandir, de 1996, promoveu a desoneração do ICMS na exportação de matérias-primas e produtos semielaborados, assegurando ressarcimento aos Estados que perderiam receitas. Consequência: ademais de não se saber, até hoje, se essa medida resultou tão somente em preferência para exportação de commodities em lugar de produtos elaborados, o ressarcimento é operação inacabada, constituindo vistoso “esqueleto” para a União e prejuízo corrente para os Estados, demandando interveniência do STF e do TCU.
Caso 4: a Emenda Constitucional 33, de 2001, autorizou a instituição da Cide-Combustíveis, visando a equilibrar o tratamento tributário dispensado às importações e à produção doméstica de combustíveis, no âmbito da extinção do monopólio da Petrobrás na importação. Além de ser instrumento eficaz no enfrentamento da sonegação no setor, a Cide-Combustíveis era um tributo flexível capaz de compensar as constantes variações nos preços internacionais do petróleo, inclusive mediante o financiamento de subsídios a preços e transporte de combustíveis. Posteriormente, a Emenda 42, de 2003, deu uma esdrúxula redação ao parágrafo 1.º do art. 150 da Constituição e partilhou com os Estados e municípios a arrecadação da Cide-Combustíveis. Consequência: eliminaram-se a flexibilidade e a operabilidade do tributo, o que pretexta a adoção de exóticas medidas para, por exemplo, prevenir greve de caminhoneiros.
Caso 5: injustificadas pressões pela não cumulatividade, porquanto improcedentes os argumentos de verticalização e de repercussão negativa nas exportações, resultaram na adoção do regime não cumulativo do PIS/Cofins. Consequência: a tributação ficou muito mais complexa, especialmente pela instituição de uma miríade de regimes especiais e pelos desnecessários litígios sobre créditos de insumos. Receio que, hoje, não haja um só contribuinte do regime não cumulativo que não prefira voltar ao regime cumulativo.
De quando em quando, ressurge a campanha pela instituição do IVA nacional, presumidamente inspirado no modelo europeu e jamais adotado nos EUA. Boas intenções e ingenuidade explicam essa pretensão. Desde sua primeira experiência em 1949, o IVA constituiu um avanço em relação às tributações então existentes, sendo bem adaptado às cadeias produtivas constituídas a partir da Revolução Industrial.
A globalização e a revolução tecnológica promoveram, contudo, mudanças profundas em todos os campos. O IVA não lida bem com redes produtivas, revelando-se, como já se disse, “incompatível com o mundo digital”.
Em lugar de olhar para o futuro (tributação de fluxos de caixa – DBCFT, na sigla em inglês – e da economia digital) e consertar, com prudência, os erros do presente, especialmente burocracia e processo tributários, prefere-se discutir experimentos que inaugurariam um novo ciclo de longos litígios, com repercussões perversas sobre as receitas públicas e os contribuintes. Insensatez cobra caro.
Fonte: “Estadão”, 02/05/2019