Atenas, na Grécia Antiga, abrigou a primeira sociedade a acreditar que a liberdade de expressão era essencial ao bom governo. Mais de 2.500 anos atrás, qualquer cidadão ateniense podia falar livremente à assembleia reunida perto da Acrópole. Todos ouviam. Decisões coletivas eram tomadas por meio do debate aberto e de argumentos racionais, no regime chamado de “democracia”. Não é à toa que, em grego antigo, discurso e razão são a mesma palavra, logos, de onde derivaram a “lógica” e o “racionalismo”. Hoje, a liberdade de expressão não é um conceito uniforme. Mesmo as sociedades ocidentais, tidas como livres, a interpretam de modos distintos. As mesmas manifestações contra etnias ou culturas podem ser proibidas na Europa, mas permitidas nos Estados Unidos. Para não falar em países autoritários, que cerceiam imprensa e cidadãos, como Rússia, China, Venezuela ou ditaduras na África e no Oriente Médio. A internet encurtou as distâncias, tornou mais agudos os dilemas – e mais urgentes as escolhas relativas à liberdade de expressão. À medida que governos e corporações digitais estabelecem controles sobre a informação, esvai-se o ideal da grande praça global que traria, nos moldes atenienses, liberdade, democracia e racionalidade a bilhões de conectados.
“Na internet, há um risco de fragmentação em milhares de pequenos ‘casulos de informação’: câmaras de eco em que as notícias e opiniões que vemos são as preferidas por quem pensa igual”, escreve o historiador britânico Timothy Garton Ash no recém-lançado “Free speech: ten principles for a connected world” (“Liberdade de expressão: dez princípios para um mundo conectado”). Ash apresenta um decálogo para tentar manter vivo o ideal racional da livre troca de ideias no mundo convulsionado, dentro e fora das redes sociais, pela intolerância com a diversidade, pela histeria politicamente correta, pela invasão da privacidade e pelo mais abjeto e racista discurso de ódio. Para lidar com esse “esgoto”, ele adota uma posição comum entre europeus de esquerda. “Deveríamos limitar a liberdade de expressão o mínimo possível por lei e pela ação executiva de governos e corporações”, diz. “Quanto menos quisermos obrigar por lei, mais precisaremos fazer nós mesmos.”
Seu livro explora em detalhes as ofensas religiosas, como os cartuns do profeta Maomé publicados nos jornais dinamarqueses ou o filme ridículo e imbecil que provocou revolta entre muçulmanos e levou ao assassinato do embaixador americano em Benghazi, na Líbia. Ash reafirma o direito à ofensa e à blasfêmia – “um direito, não um dever”, nas suas palavras. Diz que não devemos ceder a ameaças de assassinos, sob pena de incentivarmos novas ameaças. É enfático na condenação ao movimento politicamente correto nas universidades, que veta autores considerados ofensivos por minorias e estabelece regras absurdas (“trigger warnings”) para a menção a certas obras. “Se formos longe demais na tolerância àqueles que são, eles próprios, programaticamente intolerantes, acabamos por destruir os fundamentos da tolerância”, escreve.
Ash está certo em detectar as ameaças potenciais à liberdade vindas das grandes corporações. Mas esqueceu ameaças mais reais, vindas de governos, sobretudo na América Latina. Em quase 500 páginas, não há uma palavra sobre o controle da imprensa na Venezuela chavista, na Argentina kirchnerista ou sobre as tentativas recentes de “controle social” no Brasil lulista.
O otimismo racionalista é evidente em sua argumentação. Ash confia no ideal iluminista de que o bom-senso e a razão haverão de prevalecer. “A resposta liberal clássica é ‘devemos responder ao discurso nefasto com mais discurso, e melhor’”, afirma. “Se o mundo conectado pode multiplicar por um milhão os rosnados do fanatismo, também pode amplificar as vozes quietas da razão corajosa.” Ele parece crer que, com base em seus dez princípios, será possível estabelecer um patamar mínimo de diálogo com diferentes culturas, mesmo aquelas que desprezam a liberdade de expressão, como a chinesa ou a islâmica. As próprias histórias que narra servem para desmenti-lo. Para comprovar que o debate não melhorou nem se tornou mais racional com a internet, basta entrar agora mesmo em qualquer rede social. As ideias defendidas por Ash são louváveis. Ele é o herdeiro legítimo de seus inspiradores, os filósofos Isaiah Berlin – “a liberdade de expressão é a raiz da natureza humana e a mãe da verdade” – e Erasmo de Roterdã – “amo a liberdade; não vou, nem posso servir a nenhum partido”. Mas ele mesmo reconhece que a defesa da liberdade exige, além da empatia e da tolerância de seus ídolos, também a coragem para enfrentar os inimigos. É isso que faz mais falta hoje em dia.
Fonte: Época, 29/05/2016.
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