Por João Manoel Pinho de Mello e Vinicius Carrasco*
Frente à dificuldade de cumprir a meta fiscal do ano de 2014, o governo decidiu por não incorporar novas exigências de investimento aos vencedores do leilão 4G na faixa de 700 Mhz, a ser realizado este mês. Como antecipou a reportagem do Valor de 15/07/2014, não foram incorporadas no edital “a obrigação de cobertura celular em todas as rodovias federais, a antecipação de obrigações fixadas no passado […] e o prazo para implantar redes de serviços com prioridades nas cidades com maior densidade geográfica”, entre outras.
O objetivo é claro: o governo quer fazer caixa à custa do consumidor de serviços de telecomunicações. Conseguirá?
A redução de exigências diminui o custo das empresas operadoras e, portanto, aumenta o valor que elas atribuem às licenças. Mas isso implicará lances mais altos para o leiloeiro? O lance máximo que um participante está disposto a dar pode ser bastante diferente do lance que ele precisa dar para ganhar o leilão.
Aliviar os investimentos aumenta o valor que os participantes estão dispostos a pagar. Mas é o desenho adotado pelo leiloeiro que determinará se isso aumentará os lances feitos, o que importa na prática. Num leilão bem desenhado, que incentive a participação de muitos interessados e induza lances agressivos, um aumento do valor máximo da disposição a pagar dos interessados resultará em maiores lances.
Mas o desenho adotado pelo governo não satisfaz as condições acima. As licenças são leiloadas em sequência, o que torna difícil a vida dos participantes. Essa dificuldade se manifesta na menor participação no leilão e na redução da agressividade daqueles que participam do leilão. Por que diminui a participação? Entrar em um grande leilão é custoso. Regras que dificultem a atuação dos participantes aumentam esse custo.
Para entender por que a agressividade diminui, pense no caso de duas licenças, A e B, que valem mais quando combinadas, isto é, são complementares. É uma temeridade fazer lances agressivos pela licença A antes de saber o preço pelo qual a licença B será vendida. Quanto o leitor estaria disposto a pagar pelo pé direito de um sapato se não soubesse o preço do esquerdo? Mesmo que as licenças sejam substitutas para o participante, o problema não desaparece: ele terá que fazer um lance por uma licença sem saber quanto uma alternativa custará. Manter a opção de fazer lances pelas licenças que serão leiloadas posteriormente reduz a agressividade no lance corrente. O preço da banana pode cair no fim da feira, diminuindo o quanto você está disposto a pagar às 7h. Em suma, o defeito no desenho pode impedir que a maior propensão a pagar se materialize em maiores lances.
É melhor leiloar simultaneamente as licenças. Imagine que os participantes percebam licenças como substitutas. Em um leilão viva-voz simultâneo, o processo de migrar seus lances das mais caras para as mais baratas ajuda a arbitrar os preços das licenças, garantindo que elas sejam vendidas pelo seu valor econômico, que é o valor atribuído pelo primeiro participante a não levar nenhuma licença. Por outro lado, o leilão simultâneo permite que o participante faça lances para o combo, ou permite observar o preço corrente da licença B quando faz lance para a licença A. Assim, o leilão simultâneo protege os participantes que percebam licenças como complementares, induzindo lances mais agressivos.
O descaso do governo com o desenho adotado compromete os benefícios fiscais da redução de exigências. Já os custos são evidentes. Queremos mesmo reduzir as exigências de investimento e cobertura? Não há almoço grátis: a contraparte será a piora na qualidade de um serviço indispensável ao cidadão. Remover a obrigação de cobertura em estradas federais prejudica tanto os consumidores como os operadores logísticos. Atrasar a implantação de redes de serviços nas cidades com maior densidade geográfica é ruim para os consumidores. Em suma, os serviços piorarão, o que é especialmente preocupante num país onde a infraestrutura claudica.
A cereja do bolo é a atuação do BNDES, que será chamado a financiar as operadoras. O Valor reporta que os termos dos empréstimos serão tão atrativos quanto os das concessões de rodovias. Traduzindo: darão, via financiamento barato, um subsídio para induzir lances mais agressivos no leilão. A ideia é usar o balanço do BNDES para tentar gerar receita fiscal no leilão. Sendo exitoso em gerar mais receita, seria a contabilidade triplamente criativa. Pior ainda se não conseguir induzir lances agressivos, o que é provável.
Nesse caso, os termos “atrativos” corresponderão a uma transferência do BNDES, ou seja do trabalhador (via FAT) e do contribuinte, para as operadoras (que não têm culpa se o governo desenha mal o leilão). Ao fim e ao cabo, o governo conseguirá, além de reduzir a eficiência econômica, tirar recursos dos que mais precisam para dar aos que menos precisam.
Mais uma intervenção regressiva. É curioso notar que, em quase todas as inúmeras discussões públicas no Brasil sobre o excelente livro de Thomas Piketty, não houve muita menção a esse tipo de transferência. Talvez porque a desigualdade não seja um problema sério no Brasil. Ou talvez porque os que menos precisam sejam os mais conectados e vocais. Uma certeza: o governo é menos progressista do que aparece na propaganda.
*Vinicius Carrasco é professor do departamento de Economia PUC-Rio
Fonte: Valor, 12/09/2014.
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