A filosofia está na ordem do dia. Eu não gosto de falar sobre o que está na ordem do dia, mas gosto de falar sobre filosofia, então, vamos lá. Vamos conversar um pouco com Isaiah Berlin, que tem coisas interessantes a dizer sobre o assunto, sendo ele autor de um ensaio intitulado justamente “O Propósito da Filosofia”. Nesse ensaio, a estratégia de Berlin para esclarecer a natureza de um problema filosófico é contrastá-lo com questões de outras áreas do conhecimento. O contraste, por sinal, explica por que a filosofia está sempre na defensiva, isto é, por que sua utilidade e até seu status de conhecimento costumam ser questionados.
O ponto de Berlin é que, enquanto questões não filosóficas trazem em si o método para sua resposta, o que significa que entender a pergunta é saber como respondê-la, questões filosóficas são desprovidas de técnica. O método da filosofia já é uma questão filosófica.
É mais fácil entender o que está em jogo com exemplos. Se eu pergunto a alguém onde deixei as chaves do meu carro, a pessoa sabe que tipo de resposta eu espero e, muito mais do que isso, ela sabe o que tem que fazer para encontrar a resposta da minha pergunta. Ela pode me ajudar a procurar a chave, movendo objetos e inspecionando diferentes cômodos da casa.
Via de regra, cursos superiores ensinam aos estudantes como procurar respostas para certas questões. É verdade que não se espera de um estudante de direito que, ao final do curso, ele tenha memorizado todo o ordenamento jurídico de seu país. Mas se espera que ele saiba que tipo de investigação conduzir para encontrar a resposta para uma questão jurídica. Ele deve saber, por exemplo, quais códigos deve abrir conforme a consulta que lhe seja feita, bem como quais cânones ele pode aplicar para interpretar o que encontrar escrito nesses códigos.
O estudante de filosofia não tem a mesma sorte. Cada filósofo que ele ler ao longo da graduação lhe ensinará a proceder de uma forma diferente em suas investigações; cada um até formulará questões de maneiras diferentes e mesmo antagônicas. Um filósofo dirá que a pergunta do outro é nonsense; o outro responderá que o primeiro nem sabe o que é filosofia. Não existirá a autoridade de um terceiro, acima desses dois, a quem o pobre estudante deva recorrer para adjudicar a disputa entre eles.
Então, por que não abandonamos a filosofia, ou melhor, por que ela não desaparece? Por que a filosofia, como um filósofo já disse, segue enterrando seus coveiros? Ao explicar o porquê, Berlin revela a influência que assumidamente recebeu de Immanuel Kant.
Entendemos por que a filosofia não desaparece ao entendermos que nossas ações, nossas crenças, nossas técnicas e, inclusive, nossas questões existem e fazem sentido somente a partir de categorias e conceitos submersos nelas. Pois bem, a filosofia é a atividade de desencavar essas categorias e conceitos – e “Categorias e Conceitos”, não por acaso, acaba sendo o título da coletânea de ensaios filosóficos de Berlin – refletindo sobre sua validade, seus conteúdos e contornos precisos, seus conflitos, etc. Cada vez que uma nova ciência surge para dar tratamento a algum desses conceitos ou categorias, as próprias questões dessa nova ciência acabam envolvendo outros tantos conceitos e categorias como pressupostos. Como resultado, surge um novo trabalho para a filosofia a cada vez que ela perde um.
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Assim se vê que a importância da filosofia se mede pela importância do auto-conhecimento. Queremos fazer filosofia, a despeito de todo desconforto que possa estar envolvido na descoberta de quem somos, quando queremos saber quais ideias estão nos guiando, inclusive porque essas ideias podem ser muito danosas, sendo que esse dano não é nem um pouco menor por estarem ocultas as ideias que lhe servem de causa.
Nota-se aqui que uma crença básica de Berlin, que permeia vários momentos de sua obra, é que ideias são tão influentes quanto forças impessoais. E não são? Talvez, nunca antes na história deste país ideias estejam sendo tão influentes na política brasileira quanto agora. Ironicamente, se o alvo do atual governo é a filosofia, isso se deve à sua ideologia, uma ideologia que chamaríamos justamente de filosofia, viesse ela à luz do dia para ser examinada e posta à prova junto às demais. Não é impossível e é mesmo um fato que certas ideologias – entendidas como um conjunto mais ou menos sistematizado de ideias que guiam crenças e ações – assumem o anti-intelectualismo como um de seus principais aspectos. Esse é certamente o caso da ideologia presente no governo Bolsonaro.
A ideologia a que me refiro tem como característica peculiar a ideia que ideologia é coisa dos outros. Ela mesma é apenas o senso comum, ou, mais pomposa e pretensiosamente, o common sense da filosofia empirista britânica. Nesta ideologia, acredita-se que certos valores e instituições sejam naturalmente superiores a outros pelo simples fato de, supostamente, não terem sido arquitetados por doutrinadores. Tais valores e instituições seriam o fruto não deliberado de interações pessoais nas quais cada indivíduo visaria apenas seu próprio fim. A ordem espontânea resultante dessas relações interpessoais seria sempre benéfica. Todo dano seria causado por tentativas de substituição dessa ordem espontânea por uma ordem arquitetada por filósofos.
Nesse sentido, o filósofo surge, ao fim e ao cabo, como um perturbador da ordem. O dano causado por ele, como já sugeriu alguém no governo, seria até maior do que o dano causado pela corrupção: toda mazela social, no final das contas, deveria ser creditada na conta do filósofo que, pela doutrinação, tentou modificar a ordem espontânea para adaptar a sociedade a suas teorias. Em suma, aos olhos desta ideologia de que falamos, o filósofo surge como o doutrinador que corrompe os costumes, sendo esses sempre bons.
Ações políticas se seguem dessas ideias. Para que a sociedade possa seguir seu curso natural livre dos doutrinadores, lançam-se algumas medidas profiláticas, como o Escola sem Partido, que é uma tentativa de blindar a escola básica, onde se encontra o filho de todo cidadão, contra as doutrinas produzidas nas universidades. Porém, como sempre se deve cortar o mal pela raiz, ataca-se a própria universidade, ou, ao menos, todo curso seu destinado a pensar a sociedade, sobretudo, a filosofia e a sociologia. Note que nem é preciso proibir por lei que se lecione essas disciplinas, afinal, dado que, fora da universidade pública, restariam apenas alguns poucos focos isolados de filosofia e sociologia na sociedade, eles seriam inócuos. Uma vez erradicada a grande maioria das fontes produtoras de doutrina moral e política, o senso comum seguirá o seu curso triunfante rumo ao progresso dos homens práticos.
Agora, suponha apenas por um momento que exista alguma verdade no que foi dito acima. Suponha que ideias como as expostas acima realmente inspirem as políticas públicas do atual governo. Não há valor em saber disso? Pelo contrário, deveríamos estar tão confiantes na verdade desse credo (ou de qualquer outro) a ponto de queremos que ele seja seguido às cegas? A propósito, seria esse, em particular, um credo que só pode ser seguido às cegas? E, por fim, devemos confiar em um governo que prefere camuflar a ideologia que o guia, que pretende fazer morrer à míngua toda forma de saber que poderia lhe revelar e desafiar?
Não devemos nos deixar enganar por quem nos quer fazer acreditar que a filosofia seja um luxo, portanto, uma atividade adequada apenas para os ricos e para os países desenvolvidos, porque esse é um ótimo discurso justamente para quem pretende governar os mais pobres sem sofrer oposição qualificada. É verdade que o extremamente necessitado não filosofará, mas dessa platitude não se segue que um país em desenvolvimento como o Brasil deva tratar a filosofia como uma atividade supérflua. Em outras palavras, estou sugerindo que a ideia de que o progresso material deva ser absolutamente priorizado por emergentes e que a reflexão não tem importância ou até atrapalha o progresso material já reflete um conjunto de valores morais e políticos em particular que estão nos guiando, valores que não deveriam ser simplesmente ossificados em qualquer sociedade que se pretenda moderna e democrática. Aliás, seria útil perguntar ao economista ora ministro da educação o quanto de progresso material precisamos obter para então podermos nos dar ao luxo da filosofia.
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Na França, por exemplo, os coletes amarelos reclamam de doações para a reconstrução da Catedral de Notre-Dame. Não poderiam reclamar igualmente da existência de financiamento público para a filosofia em seu país, enquanto eles possuem necessidades não providas pelo estado? Enquanto houver problemas sociais, não pode haver financiamento público para a filosofia, ou seja, para a reflexão sobre as ideias que nos movem? Não é minimamente relevante para a qualidade das decisões políticas de uma sociedade que nessa sociedade se saiba tratar de seus próprios valores na esfera pública com o mesmo rigor com que se sabe operar um coração ou construir um viaduto?
Não se trata de concluir que a filosofia deva receber o mesmo tratamento que a medicina no orçamento do estado. Não deve ser assim, nunca foi assim e não é assim agora. Até por isso, a situação da medicina no Brasil, retórica governamental ideológica à parte, não seria significativamente impactada pelo redirecionamento a ela de verbas hoje destinadas à filosofia e à sociologia. Trata-se apenas de defender que a filosofia (com o resto das humanidades) tenha o seu lugar, até porque, convenhamos, não há ser humano cujo objetivo de vida consista em ser saudável. Queremos a saúde se a vida valer a pena ser vivida. Sócrates dizia que a vida não examinada não merece ser vivida. Podemos discordar dele; argumentar contra ele. Então, estaremos fazendo filosofia, isto é, examinando os valores mais fundamentais de nossas vidas. Seja lá qual for nossa ideologia, o importante é termos em vista que ideias não examinadas – sejam elas oriundas da tradição ou da pena de filósofos – não deixam de nos guiar, para o bem e para o mal, ao não serem examinadas.
Fonte: “Blog da Andrea Faggion”, 29/04/2019