Cada vez mais torna-se claro que, hoje, o Poder Judiciário é o grande gerador de insegurança jurídica no país, nada obstante a qualidade inquestionável de seus membros, nas diversas instâncias.
O país não discute a idoneidade e a competência dos magistrados. A primeira, pela quase inexistência de casos envolvendo atitudes menos éticas e pro bono sua de juízes; a segunda, porque não só a dificuldade da aprovação em concursos, mas também a obra publicada por grande parte de seus membros demonstram sua cultura jurídica de forma manifesta. Eu mesmo participei de três bancas examinadoras de concursos para magistratura, duas no âmbito federal e uma no estadual, em São Paulo; examinamos em torno de 7 mil candidatos para a aprovação de menos de uma centena, e sei das dificuldades que criamos na avaliação de sua competência.
O que se discute é seu protagonismo, ou seja, o individualismo de que muitos deles sentem-se imbuídos, não poucas vezes pretendendo mais impor sua opinião pessoal, até como legislador, do que fazer justiça ou dar estabilidade às instituições. A esta nova onda que impregnou parte da magistratura tem-se denominado de neoconstitucionalismo, consequencialismo, judicialização da política ou politização do Judiciário, mas que se pode resumir em invasão de competência de outros poderes, quando estes poderes não estão agindo ou agem contrariamente às convicções pessoais do magistrado.
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De legislador negativo, que sempre foi o Judiciário, passou a ser legislador positivo e a legislar em lugar do Legislativo, em seus vácuos ou nas suas discordâncias, assim como a administrar ações do Executivo de acordo com suas preferências jurídicas, quando não ideológicas. Nada fere mais a Constituição do que tal postura.
Reza o artigo 103, § 2.º, da Lei Suprema que nem mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão pode o Supremo Tribunal Federal legislar em nome do Congresso, cabendo-lhe determinar ao Legislativo que produza a lei que por omissão inconstitucional não produziu, numa clara demonstração de que a função do Judiciário é apenas não dar curso a leis inconstitucionais, mas não legislar na omissão legislativa.
Afastando qualquer veleidade de vocação legislativa, que os magistrados não têm, o disposto no artigo 2.º da Constituição Federal declara que os poderes são harmônicos e independentes. Ora, esta invasão constante da competência de outros poderes – que poderá provocar, no futuro, a desobediência do Legislativo (de acordo com o artigo 49, inciso XI da Constituição) em não cumprir as decisões e o recurso extremo às Forças Armadas (previsto no artigo 142 da Carta Magna), se um poder se sentir atingido por outro – é que tem gerado a brutal insegurança jurídica em que vivemos. O episódio recente de um desembargador incompetente que pretendeu, de acordo com suas preferências ideológicas, subverter todo o processo judicial, sem fundamentação jurídica, para soltar o ex-presidente Lula é apenas decorrência de tal ativismo judicial.
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Não entro, no presente artigo, a discutir qual a melhor interpretação do artigo 5.º, inciso LVII da Constituição – se, como cidadão, prefiro a dura exegese da Suprema Corte, como velho constitucionalista, tenho sérias dúvidas se seria a melhor delas. O caso, todavia, não é este, mas sim o de que a matéria já fora examinada por quatro instâncias, não cabendo alegar, como argumento novo, ser o ex-presidente Lula pré-candidato à Presidência. Se o argumento pegasse, qualquer condenado a partir de agora poderia dizer que também seria pré-candidato a qualquer eleição futura para livrar-se da prisão!
Não sem razão, os debates serenos no plenário do Supremo foram substituídos por discussões calorosas, muitas vezes com ofensas pessoais, típicas do Legislativo e não do Judiciário.
Faz-se necessário, para o bem do país, que a magistratura, pela qualidade de seus membros, volte a ser independente, mas apenas nos limites de sua competência, sem assumir forças que não são suas e pertinentes a outros poderes.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 22/07/2018