A primeira organização política dos Estados Unidos foi muito marcada pela luta contra um governo considerado opressor e excessivo. Era uma guerra pela liberdade, que foi vencida pela união de forças da sociedade, dos governos locais e dos estados. A euforia da vitória levou todos a imaginarem que esses valores seriam suficientes para conduzir o país – e isso se traduziu nos Artigos da Confederação, a única lei considerada necessária para todos.
Eram pouco mais que princípios, todos eles deixando larga latitude para interpretação dos estados e dos governos locais. Como no caso das interpretações de Jefferson e Washington mostradas na semana passada, este arranjo era mínimo como norma – e máximo naquilo que se deixava para decidir segundo o costume, de acordo com as inclinações do momento.
Os resultados foram tão tênues quanto as alforrias de escravos por patrões inclinados às ideias de liberdade. Cada estado julgou mais prudente pensar em sua própria segurança, de modo que nove marinhas diferentes foram organizadas. Havia a previsão de uma moeda nacional, mas também neste caso a concorrência falou mais alto que a unidade: sete estados começaram a emitir moeda própria – muitas vezes mais acreditadas que a moeda nacional. Como uma coisa leva a outra, muita gente achou que não valia a pena pagar impostos para o governo nacional – a ausência de força para punir as transgressões tornava ainda mais atraente a hipótese.
Os anos foram passando e as consequências aparecendo. Os ingleses haviam sido derrotados pelas armas e assinado acordos pelos quais suas tropas deveriam ser recolhidas para a Europa. Logo, vendo que não aparecia quem viesse obrigar pela força o cumprimento do acordado, muitos comandantes foram ficando ali mesmo onde estavam – enquanto os vencedores iam fazendo vaquinha para tentar contratar mais soldados.
As colônias do norte começaram a ter problemas. Uma das principais atividades nelas era o comércio com a região do Caribe. Antes da independência, os grandes clientes na região eram os estabelecimentos ingleses — um mercado que foi perdido com a guerra. Não chegava a ser desesperador, já que havia compradores franceses, holandeses e espanhóis; até então as vendas ali eram todas por contrabando, de modo que havia grandes esperanças de aumentar muito o comércio por ali com a independência. As maiores expectativas eram com as colônias da França, que apoiara a independência pensando em arranjar problemas para os ingleses.
O produto contrabandeado de maior resultado econômico eram os escravos. Ao longo do século 18 os traficantes de Boston, no coração branco da Nova Inglaterra, haviam vendido 194 mil escravos nas diversas colônias do Caribe. A maior procura para a “mercadoria” estava em Cuba. Mas, claro, os traficantes serviam todos os países, inclusive os próprios Estados Unidos. Na época da independência, 14,4% da população da nortista Nova York era constituída por escravos.
Além deles, os comerciantes das colônias do norte exportavam uma grande variedade de produtos: peixes, aveia, trigo, farinhas, manteiga e queijos – além de madeiras, tonéis, cavalos, carnes, sabão e velas. Somando tudo o mercado caribenho absorvia, na década de 1770, as mesmas 760 mil libras esterlinas que as vendas de tabaco para a Europa – então a principal produção das colônias do sul.
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Mas as esperanças foram se transformando em desespero. A marinha inglesa era forte e não tratava exatamente com delicadezas os novos estrangeiros. Contrabandistas nunca são exatamente bem-vindos, de modo que os navios norte-americanos começaram a sofrer vistorias mais fortes que de costume – e a pagar mais propina para não serem incomodados. As marinhas dos estados não se constituíam em argumento de respeito.
Nos primeiros anos a situação no sul foi mais favorável. As exportações continuaram fluindo para a Europa, com a França tomando o lugar da antiga metrópole como compradora. O emprego da força não era tão necessário neste caso, e por isso os estados produtores mantiveram apenas as exigências mercantilistas tradicionais: apelo à liberdade de comércio com facilidade para importações, tarifas tão baixas como possível e segurança deixada a cargo dos grandes proprietários e suas milícias, quase sem intervenção do governo.
Cada parte do novo país foi se virando – e uma colisão interna foi inevitável, especialmente a partir da questão escravista. Os Estados Unidos eram o único território em toda a América no qual a taxa de natalidade dos escravos era maior que aquela de mortalidade. Com isso os grandes proprietários eram também “criadores” de escravos: obtinham lucro vendendo filhos de seus escravos para outros interessados.
Havia uma divisão não escrita dos mercados. Na época da independência os grandes proprietários do sul abasteciam o mercado interno – formado especialmente por unidades novas que iam se instalando com a expansão das vendas. Já a compra e venda de escravos africanos, como se viu, ficava centralizada em Boston e abastecia prioritariamente o Caribe.
A queda das oportunidades de toda espécie acabou levando os produtores do norte a tentar vender um pouco de tudo para o sul – e os sulistas a buscarem oportunidades no norte. Os governos estaduais entraram na jogada oferecendo favores fiscais para vizinhos.
Para resumir a novela: instaurou-se uma guerra fiscal e uma concorrência predatória entre as antigas colônias. Em pouco tempo os governos locais começaram a dar calotes nas dívidas. As antigas esperanças de progresso começaram a dar lugar a um amargo pessimismo com relação ao futuro. A economia andou para trás.
A situação chegou ao ponto tal que os estados decidiram convocar uma Convenção Constitucional para se reunir na Filadélfia em maio de 1787. Doze estados elegeram 74 delegados para a convenção; 55 se reuniram na cidade. Como os tempos eram outros e a situação era grave, os eleitos resolveram ir bem além do que havia sido delegado a eles pelos eleitores.
Para poder dar o salto, fizeram um acordo de cavaleiros. As sessões seriam secretas. Nenhuma nota seria tomada oficialmente. Não haveria registros das contagens de votações. No final haveria apenas um texto, assinado por todos. Hoje em dia seria impossível imaginar um acordo desta espécie, mas o fato é que o segredo se manteve durante quatro meses. Apenas meio século depois algumas anotações pessoais de participantes começaram a ser reveladas, o que permite uma reconstrução mínima da obra.
A concordância inicial foi a de criar leis que desenhariam um governo nacional com poderes impositivos sobre os estados (o maior deles sendo o de vetar leis que contrariassem as nacionais). Teria também capacidade de agir diretamente com os cidadãos. Mas também teria limites, dados pela própria lei. O primeiro desses limites seria o da divisão de poderes.
A unidade quase acabou no momento de desenhar a estrutura do poder legislativo nacional. Os estados pequenos temiam o domínio avassalador dos maiores, e por isso propuseram um legislativo com um representante para cada estado. Os maiores insistiram na representação popular. O impasse acabou resolvido com um senado que representava os estados e uma câmara que representava a população. Além disso foi decidido que as leis que criavam impostos, as mais sensíveis de todas no momento, teriam de se originar da Câmara.
Assim começava a rodar a máquina da decisão democrática: alguns cedendo daqui, outros dali – e se formava a maioria. O passo seguinte foi modelar um Executivo muito mais forte que o existente. A ideia vencedora foi a de capacitar o governo nacional a cobrar diretamente os impostos necessários para a manutenção de suas atividades e com capacidade para agir acima das determinações dos governos estaduais, atuando diretamente sobre os cidadãos. O desenho do Judiciário federal seguiu este modelo: ele deveria atuar sem intermediações estaduais nos casos de sua responsabilidade.
Criado o modelo geral, veio a matéria substantiva. Nas palavras de Alexander Hamilton, um dos defensores da Constituição que estava sendo criada:
“As principais finalidades da União são: a defesa comum de todos os membros; a preservação da paz pública, tanto contra convulsões internas como dos ataques externos; a regulação do comércio com outros países e entre os diversos estados; a superintendência das trocas políticas e comerciais com as demais nações”.
Ele anunciava com toda clareza que os tempos da máxima liberdade seria substituído pela combinação de lei estatal e força:
“Governar implica o poder de fazer leis. É essencial na noção de lei que haja sanção; ou, em outras palavras, uma penalidade ou punição por desobediência. Se não houver penalidade associada à desobediência, as resoluções ou comandos pretendidos pelas leis não seriam mais que conselhos ou recomendações. Essa penalidade, qualquer que seja, só pode ser infligida por dois caminhos: pelas sentenças de cortes judiciais ou por força das armas”.
Agora o desenho previa não apenas novos poderes para a esfera federal, meios de arrecadação para manter esses poderes atuando — com exercício sem contraste sobre os demais. Hamilton também fez questão de ser claro sobre a ausência de limites, especialmente no campo da segurança nacional:
“As capacidades essenciais para a defesa são: organizar exércitos; construir e equipar frotas navais; determinar as regras para o funcionamento de ambos; dirigir suas operações. Esses poderes devem existir sem qualquer limitação, porque é impossível definir antecipadamente a extensão e variedade das necessidades nacionais”.
As definições caíam como uma luva para as reivindicações do norte. John Adams, o principal advogado delas, definia o principal objetivo da nova organização como “o estabelecimento de uma política comercial ativa”. E era claríssimo sobre o uso da força nacional:
“O comércio das Antilhas faz parte do sistema comercial norte-americano. Eles não podem nada sem nós e não podemos nada sem eles. O Criador nos colocou na terra em tal situação que necessitamos uns dos outros”.
Ficava uma questão: por que o sul pagaria a conta de tudo isso? Enquanto a questão ficou sem resposta foi forte o discurso daqueles que pregavam o estado mínimo e os limites para o governo. John Lansing definiu o documento em formação como “um monstro de três cabeças, fruto de uma conspiração da idade das trevas contra as liberdades e os povos livres”.
A retórica foi deixada de lado quando se ajustou um novo significado para a aporia de Thomas Jefferson – a definição de “seres humanos dotados de direitos à vida e a liberdade” com a realidade da escravidão. Este ajuste ficou conhecido na literatura constitucional dos Estados Unidos como “O Pacto Sujo”.
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Os traficantes de Boston se comprometeram a dirigir seus negócios apenas para o exterior num prazo curto, além de aceitar uma norma que proibiria o tráfego internacional de escravos num prazo de vinte anos. Além disso, todos os estados do norte (inclusive a Pensilvânia, que decretara a abolição da escravatura em 1780) seriam obrigados a obedecer certas regras duras. O Pacto Sujo foi traduzido em quatro pontos da Constituição, com todos os cuidados de linguagem.
No artigo I, seção 2, parágrafo terceiro, define-se a contagem da população para efeito de determinação do número de representantes. Além dos cidadãos livres, contariam “três quintos de todas as outras pessoas”. Sem nenhuma espécie de direito, os escravos garantiam representação a seus senhores.
No mesmo artigo, na seção 9, parágrafo primeiro, havia uma compensação para o norte. Os estados poderiam proibir “a migração ou importação de pessoas que julguem próprio admitir” – ou seja, poderiam proibir o tráfico ou a entrada de escravos.
No artigo 4, seção 2, parágrafo terceiro, vinha a proteção para os sulistas. Estados sem escravidão ficavam “proibidos de emancipar pessoa tida em serviço em outro estado” e também eram obrigados a devolver eventuais fugitivos a seus estados de origem.
Assim a Constituição foi feita e aprovada. Levava mais longe a técnica iluminista de organizar a vida política e social a partir de princípios gerais da Razão. Diminuía o espaço para a liberdade e aumentava o poder do governo. Começava, por vias turvas, a enquadrar a escravidão na vida legal – sem nunca reconhecer o valor jurídico da instituição, motivo pelo qual a palavra “escravo” não aparece no texto. Levou pouco tempo para que se soubesse que tal prudência era necessária naqueles tempos.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 24/05/2019