O Brasil é assim: a história é reescrita de dez em dez anos (como dizia Ivan Lessa); as pessoas viram pelo avesso (quem foi censurado tem agora belos motivos para censurar) e eventos e figuras históricas simplesmente não existiram. De um lado, são tidos como heróis indisputáveis; do outro, são tidos como bandidos e reacionários. O crime desaparece com o julgamento do mesmo modo que as nuances de um vida são reduzidas a duas ou três circunstâncias. As mentiras repetidas, conforme sabiam os nazistas, canibalizam os fatos e tornam-se verdades.
No Brasil do PT ficamos habituados a tudo contra o governo ser uma conspiração e tudo a favor, revolução. Temos, como escrevi em Carnavais, Malandros e Heróis, uma ética múltipla aplicada de acordo com a pessoa e o contexto de modo que todos os fatos são duvidosos. Estamos mais perto do George Orwell do que imaginamos: quem controla o presente controla o passado.
O que li sobre os 50 anos da morte de JFK inspira-me. Eis um homem multifacetado e contraditório, mas preso a um papel exclusivo: o de presidente da República. Um papel que fecha biografias e, mesmo nos Estados Unidos, hierarquiza o seu ocupante como o “número 1”, concedendo-lhe um tratamento aristocrático. Ademais, JKF foi um presidente muito jovem e por isso muito testado pelos soviéticos na crise cubana. Era um homem muito elegante e rico, um mulherengo freguês do proto-harém de Frank Sinatra e – eis um ponto crucial – ele teve morte súbita. Foi tirado da vida num papel capital por um louco que a ele se ligou pelo poder dos fracos. Num sentido preciso, JFK foi a primeira vítima da guerra que ele próprio alimentou: a “guerra fria”.
Mesmo quem não simpatizava com a política externa americana, como era o meu caso, foi atingido naquele 22 de novembro de 63 pela violência que tirou JFK deste mundo, lançando-o no reinado das biografias e dos mitos. O único modo de compensar moralmente o absurdo do infortúnio era imaginar algo equivalente: no mínimo, uma conspiração. Ainda mais quando testemunhamos em preto e branco, como foi o meu caso, o assassinato do assassino.
Quando saí do meu escritório na Bow Street e fui para casa, vi pessoas chorando e outras em pleno desespero. Naquele momento, não havia mais republicanos e democratas, estudantes e pessoas comuns, consumidores e fornecedores, esquerdistas e reacionários, nacionais e estrangeiros, brancos e negros. Todos se transformaram em órfãos nacionais; em cidadãos cujo presidente foi levado pela tragédia que atingia a todos por igual.
Um colega, leitor assíduo de Lenin, declarou-se chocado e foi ele quem primeiro me falou em “terrorismo” como uma parte do arsenal dos que não tinham dúvida de que os fins justificavam os meios.
Naquele frio e escuro novembro, vi pela primeira vez a histeria coletiva fora do Brasil. O Brasil que muitos supunham histérico por natureza (e que em abril do ano seguinte mergulharia em algo semelhante, assassinando algumas de suas instituições republicanas), mostrou-se dotado de uma incrível capacidade de tolerar e esquecer o que não deveria ser tolerado ou esquecido como os crimes políticos cometidos no que chamamos de “períodos autoritários”. Mas a Harvard, comedida e controlada, virou um amplo teatro de dor e angústia. Tal como vi décadas depois em Notre Dame, agora como professor e velho no 11 de setembro. O dia em que os americanos foram, pela primeira vez na sua história, atacados em seu próprio território. Tirando, é claro, a experiência sanguinária da sua Guerra Civil a qual, proporcionalmente falando, teve uma enorme, se não incomparável, magnitude.
Um outro elemento que depois de 50 anos surge com claridade no quadro social desta tragédia é que somos muitos. E JKF foi muita coisa, como descobrem esses Estados Unidos mais decepcionados consigo mesmos. Kennedy era um aventureiro sexual, acostumado a viver em mundos diversos e contraditórios. Por isso, talvez, ele tenha conseguido evitar uma guerra termonuclear a partir da crise cubana como diz de modo explícito o premier da União Soviética, Nikita Khruchev, nas suas memórias. Ali, o russo relata os esforços dos irmãos Robert e John Kennedy no sentido de evitar o pior, diante de um Fidel Castro muito justificadamente irritado e inflexível, porque para ele era óbvio que Cuba estava sendo usada como um teste para os Estados Unidos no grande confronto com a União Soviética.
A imagem de Kennedy, como a de outros heróis americanos, tem sido reavaliada com mais parcimônia e realismo. Afinal, ele foi um líder contra o bom e hoje velho e caduco comunismo e foi no seu governo que a guerra do Vietnã começou. Mas não se pode esquecer do seu papel como deflagrador do movimento dos Direitos Civis nuns Estados Unidos segregados.
Como seria o mundo sem um Kennedy é um exercício equivalente a imaginar um Brasil sem o suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio e o Golpe Militar. Ou o Lulopetismo e figuras como José Dirceu que comandou o Brasil como o Capitão do Time do governo Lula e hoje comanda uma cela na Papuda.
Fonte: O Globo, 27/11/2013
Perfeito o artigo de Roberto DaMatta!! Porem gostaria de fazer só uma ressalva, não seria o ataque de Pearl Harbor, no Havaí, O primeiro ataque sofrido pelos Americanos em seu próprio território?! Parabéns pela matéria.