Não é muito controverso afirmar que Marx – cujo nascimento completou 200 anos em 5 de maio – errou, e errou feio, em muito de sua leitura da história e, especialmente, suas previsões para o futuro. Para ele, o desenvolvimento do capitalismo industrial levaria ao acirramento da divisão de classes, com a burguesia detentora de uma riqueza cada vez maior e o proletariado depauperado, reduzido ao nível da mera sobrevivência e reprodução, compreendendo praticamente todo o resto da sociedade.
É no ápice do capitalismo, do capitalismo levado ao extremo, que a revolução se tornaria inevitável. Por essa lógica, a Inglaterra era o lugar natural em que se esperar a revolução comunista. Essa revolução seria, por sua vez, global. A solidariedade de classe que unia a todos os trabalhadores criaria um efeito cascata, derrubando os governos de todo o mundo e dando início, finalmente, a uma nova ordem social, essa sim compatível com a tecnologia moderna e capaz de distribuir melhor os frutos dessa produtividade toda.
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Marx fez pouca questão de descrever como seria feita, na prática, a organização econômica e social depois que o capitalismo fosse superado. Falou e deu algum esboço sobre um período intermediário, “a ditadura do proletariado”, na qual o Estado – nas mãos dos trabalhadores – ainda teria o papel de controlar tudo. Mas seria um período curto, logo seguido pelo comunismo, no qual o Estado não teria mais razão de ser e deixaria de existir. Os homens estariam prontos para viver em perfeita igualdade, harmonia e liberdade.
Nada disso aconteceu. Ao invés de aumentar, a pobreza extrema no mundo veio caindo continuamente, de modo que pela primeira vez na história temos menos de 10% da população mundial em situação de miséria. Tudo isso graças ao capitalismo global, que tirou as massas de miseráveis do campo da Ásia e lhes deu empregos industriais e comerciais nas cidades. Fome, saúde, analfabetismo; tudo melhorou. A globalização que deveria depauperar o mundo foi, na verdade, a força que mais elevou o padrão de vida das pessoas mais pobres.
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A Inglaterra – e o mundo de língua inglesa de maneira geral – não só nunca ensaiou uma revolução como sempre foi o país mais avesso ao caminho revolucionário e ao marxismo, preferindo sempre reformas e mudanças graduais, ao passo que os países do continente (Alemanha, França, Itália, Rússia) flertaram ou mergulharam na revolução.
Por fim, a única coisa que a suposta revolução proletária conseguiu foi ficar no estágio da “ditadura do proletariado”; exceto que ela não se diferenciou em praticamente nada de qualquer outra tirania da história. O marxismo serviu de roupagem para regimes que, essencialmente, fizeram o que sempre se fez quando o poder total se concentra nas mãos de um pequeno grupo: usam todos os meios à sua disposição para controlar e aterrorizar a vida de seus súditos; além de arruinar a produção e promover a miséria.
Dito isso, certas mudanças na economia do século 21 podem nos levar por um caminho não inteiramente diferente daquele previsto por Marx.
Para ele, a organização econômica – e, em consequência, todo o arcabouço legal e a cultura – era determinada pela tecnologia vigente. Moinhos de ventos produziram o feudalismo; a máquina a carvão, o capitalismo. Vivemos um novo estágio da tecnologia de produção: a robotização. E conforme mais e mais funções vão sendo substituídas por robôs (não estamos falando só de trabalho braçal, mas também de advogados, contadores, vendedores, motoristas, tradutores e muitos outras funções), ressurgem os temores de que a nova tecnologia produza uma massa de desempregados crônicos. Com todas as demandas humanas potencialmente satisfeitas a um custo baixíssimo, não restaria nada para a maioria da humanidade fazer. Uns poucos donos dos robôs e das fábricas ficariam riquíssimos, e o resto não teria nada.
Sem trabalho, consumiriam logo a pouca propriedade que têm e cairiam na indigência. O único jeito de evitar esse desfecho – e sem dúvida essa maioria pegaria em armas para evitá-lo – seria compartilhar os excedentes da produção abundante com eles. Ou instaura-se um programa massivo de redistribuição de renda, ou quebra-se a propriedade privada dos meios de produção e se os divide entre todos, cada cidadão com direito a uma pequena parcela dos royalties dos robôs.
Ou seja: uma mudança tecnológica que aumenta a produtividade exacerba a divisão entre ricos e pobres, de modo que a única saída é uma redistribuição da propriedade (ou, ao menos, na versão reformista, da renda), garantindo a todos o consumo necessário para viver em liberdade num mundo não mais marcado pela necessidade de se escravizar ao trabalho. Exatamente como Marx dizia.
Claro, há diversas premissas dúbias aí no meio. Eu, por exemplo, não acredito que a robotização acabará com o trabalho. Assim como a mecanização das fábricas e do campo, ela vai abolir algumas profissões, liberando assim mão-de-obra para setores e atividades antes sequer imaginados. Também é ilusório crer que, com sua renda universal garantindo bem-estar material, os homens inaugurariam uma nova era de harmonia e sem exploração. Pelo contrário, a competitividade, o ressentimento e o desejo de poder continuariam firmes e fortes.
Mesmo assim, é interessante notar como temas e posições há pouco refutadas podem sempre voltar em uma nova roupagem, numa versão modernizada. Estamos há 2500 anos (ou mais) rodando e oscilando entre as mesmas posições e atitudes básicas, cada vez reapresentadas segundo o conhecimento disponível e os novos desdobramentos da história. Com Marx não é diferente. Não faz sentido procurar respostas nele: ele definitivamente não previu nosso mundo. Mas como fonte de provocações e modos de pensar, ele ainda pode ter algo a oferecer.
Fonte: “Exame”, 10/05/2018