Já se disse que o cidadão brasileiro aprendeu rapidamente a se manifestar. Petroleiros e demais categorias de trabalhadores, funcionários públicos, taxistas em protesto contra um aplicativo de celular, ativistas de minorias e direitos humanos, moradores em busca de mais segurança, ambientalistas e outros grupos políticos acostumaram-se a ocupar o espaço público para protestar contra tudo e mais alguma coisa: preço do diesel, de tarifa de transporte, preço de pedágio, falta de passarelas em rodovias, violência policial, transporte público, precariedade de programas sociais, de habitação, serviços públicos de saúde, educação, previdência e outras inumeráveis demandas. Infelizmente, ações de grupos de interesse, muitas vezes legítimos, mas sem consequências maiores na mudança da própria cultura, condutas e instituições políticas. Interesses de grupos específicos que apenas reafirmam a falta de compromisso de todos com o interesse público, fim maior da ação política.
Essa discussão sobre direitos e deveres deveria ocupar um espaço muito maior no debate público. O fato é que estamos há décadas inebriados com um sentido menor da ação política, de cunho essencialmente demagógico e não propriamente democrático, uma vez que direitos de alguns acabam por comprometer os direitos de todos. E mais: se há direitos para uns é por que deve haver deveres para outros. Entre as últimas manifestações por direitos, tomemos como exemplo as mais recentes de caminhoneiros em pelo menos dez estados. Mesmo que as reivindicações do momento sejam das mais justas para a categoria, é claro que a interrupção do fluxo de veículos em vias públicas, seja uma rua, avenida, estrada ou rodovia é ilegal. E, com certeza, muito perigosa por causa do alto risco de acidentes. Infelizmente, o noticiário fica por aí e não avança numa outra questão, o pedágio cobrado pelas concessionárias nessas circunstâncias.
Se a concessionária tem o direito de cobrar pela garantia de segurança e de fluidez de trânsito na rodovia sob seus cuidados, tem também uma série de deveres legais que o noticiário não cobre, não questiona e não conscientiza os cidadãos para o fato. Da mesma forma, se os caminhoneiros têm o direito à liberdade de se manifestar, têm também o dever de não impedir o livre ir e vir dos demais cidadãos. Dois direitos pétreos da alegada “Constituição cidadã”, livre expressão e livre trânsito, sem a menção dos deveres cívicos de todos os cidadãos para sua efetiva garantia.
Há alguns anos, eu mesmo sofri na pele esse desentendimento de direitos e deveres, que caracteriza nossa baixa cultura política, ao ficar preso numa rodovia no interior do estado do Rio de Janeiro, bloqueada por manifestantes que reivindicavam a construção de mais passarelas na via.
Em todos os contratos do poder público com concessionárias para a exploração de rodovias, está estabelecido que elas devem garantir a segurança e, é claro, a fluidez do trânsito em sua área de responsabilidade. Estes vêm a ser em essência os próprios serviços concedidos pelo poder público e prestados contra o pagamento dos pedágios. No caso de manifestações, a concessionária deve convocar e dar todo o apoio necessário às instituições policiais, agências reguladoras (constantemente omissas em sua função de interceder junto ao mercado para salvaguardar os interesses da cidadania) e Ministério Público para que a situação seja normalizada o quanto antes e motoristas, passageiros e cargas não tenham seu trânsito interrompido. As penalidades pelo não cumprimento desses serviços vão desde multas, liberação da cobrança do valor do pedágio e, no extremo, o cancelamento da concessão. Ou seja, para além da responsabilidade civil, ela tem a responsabilidade política diante de demais entes públicos, de zelar pelos seus usuários.
O conceito é o mesmo do Código de Direitos do Consumidor. Ao pagar o pedágio, o usuário da rodovia espera, em retorno, não apenas os serviços de segurança e fluidez do trânsito de uma rodovia expressa, mas a garantia de operação conjunta com os demais agentes públicos responsáveis pela manutenção de seu direito constitucional de livre trânsito. Se, num caso como esse de interrupção de vias, fica claro que o retorno não existe, então não deveria existir também a obrigatoriedade incondicional da cobrança do pedágio. Um bom exemplo disso são as próprias praças de pedágio, pontos naturais de retenção de tráfego que têm a sua liberação prevista em lei, caso as filas cheguem a 300 metros ou o tempo de espera for superior a 15 minutos, sendo a concessionária obrigada a liberar as cancelas para o tráfego voltar a fluir.
Evidentemente, as concessionárias se defendem. A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias alega que, por se tratar de concessões de poder público, elas não estão sujeitas ao Código do Consumidor, e sim ao Código de Defesa do Usuário de Serviços Públicos e de Utilidade Pública, uma lei que ainda está tramitando no Congresso Nacional sem qualquer previsão de aprovação. Esperteza pura. Segundo o promotor de Justiça Rodrigo Terra, ele mesmo um dos Agentes de Cidadania aqui de nosso Instituto, esta argumentação é falsa: “o que vale é mesmo o Código de Direitos do Consumidor, que está acima de regulações setoriais, como o setor bancário ou este de concessões públicas”.
Pois o que fiz, assim que o trânsito foi liberado? Dirigi-me à praça de controle de tráfego e avisei que não pagaria o pedágio, pois houve quebra dos serviços de segurança e fluidez no trânsito a que toda concessionária é obrigada a prover, para além da quebra de uma garantia constitucional. Junto comigo, apenas dois ou três outros cidadãos se dispuseram a perder este tempo e pressionar por melhores serviços, que valham o abusivo preço dos pedágios cobrados hoje em dia.
No próximo dia 15 de novembro, domingo, estão previstas dezenas de manifestações por todo o país para reivindicar o impedimento da presidente da República e a deposição do presidente da Câmara dos Deputados. Um dos nossos direitos máximos, o de expressão, será confrontado mais uma vez com outro, o da liberdade de ir e vir, além de colocar em risco mais outro, o da propriedade. Vamos às ruas mostrar nossa indignação com o baixo nível da nossa representação política, mas não podemos esquecer que a esses direitos correspondem outros deveres que não podem ser negligenciados. Esse é dos pontos centrais da cidadania: a cada direito, um dever. Qualquer sentido diferente deste é corrupção de valores, democracia corrompida em demagogia.
Vale lembrar que o economista Roberto Campos, ele mesmo constituinte e crítico de nossa “Constituição Cidadã”, demonstrou em números esta contradição num artigo para o “Jornal da Tarde”, ainda em 1988: “a Constituição foi promulgada com a palavra ´direito´ escrita 76 vezes, mas ´dever´ aparece em apenas quatro momentos”. Mal sabia ele que, quase trinta anos e muitas emendas depois, nossa Carta Magna ostentaria estratosféricas 163 ocorrências de “direito(s)”, contra apenas 48 “dever(es)!
Num país de elites sociais politicamente míopes e deformadas, população deseducada, governantes sem noção de honra ou pudor, gestores públicos omissos ou mal intencionados e instituições de Estado ainda adolescentes, trombeteiam direitos ilimitados a todos e a todo tempo, quase sempre a sociedade como um todo é que paga a conta. Só mesmo a esperança de que a iniciativa de poucos cidadãos conscientes e atuantes repercutida no espaço da mídia possa vir a mudar o estado miserável de nossa cultura política. Nunca foi tão oportuno o alerta mordaz de Millôr Fernandes: “Nossa liberdade começa onde começa a escravidão alheia”.
Fonte: Época, 12/11/2015
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