Em entrevista à Folha de S.Paulo, o presidente Lula afirmou que o papel da imprensa não é o de fiscalizar, e sim de informar. “Não acho que o papel da imprensa é fiscalizar. É informar. Para ser fiscal tem o Tribunal de Contas da União, a Corregedoria-Geral da República, tem um monte de coisas. A imprensa tem de ser o grande órgão informador da opinião pública. Essa informação pode ser de elogios, de denúncias sobre o governo, de outros assuntos. A única coisa que peço a Deus é que a imprensa informe, da maneira mais isenta possível, e as posições políticas sejam colocadas nos editoriais”, disse Lula.
O presidente da República questiona um dos pilares da democracia: o papel fiscalizador da imprensa. Suas declarações são uma contradição com seu suposto respeito à liberdade de imprensa. Fiscalizar faz parte integrante do processo informativo. E como Lula não é tonto, o falso disjuntivo (informação versus fiscalização) tem uma finalidade precisa: limitar o papel fiscalizador dos jornais e desacreditá-los. Na verdade, caro leitor, Lula manifesta crescente desconforto com aquilo que é rotineiro em qualquer democracia: o necessário contrapoder exercido pela imprensa.
Afinal, qual é a perversidade que deve ser debitada na conta dessa imprensa tão questionada pelo presidente? A denúncia de recorrentes atos de corrupção que cresceram como cogumelos à sombra da leniência presidencial? A veiculação de reportagens mostrando um presidente que dá olímpicas bananas à legislação eleitoral? Os jornais, por exemplo, sem uso de adjetivos e com textos sólidos, mostraram o que aconteceu recentemente às margens do São Francisco: uma fantástica operação de marketing montada pelo presidente da República e por sua candidata num explícito confronto à legislação eleitoral. Ou será que a azia de Lula é provocada pelo desnudamento de suas aparentes contradições? Recentemente, Lula criticou o criminoso vandalismo do MST, mas seu governo continua irrigando o caixa da entidade e seu partido, o PT, quer o MST na elaboração do programa de Dilma.
Eu e outros colegas da imprensa estávamos, em 2006, na Costa Rica. Lá participamos de um seminário promovido pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). O encontro foi aberto por Oscar Arias, presidente da República e Prêmio Nobel da Paz de 1987. Impressionou-me a qualidade intelectual e a entranha democrática do presidente Arias. Suas palavras foram um panegírico à liberdade de imprensa. “Juntamente com eleições periódicas e com a separação dos Poderes, a liberdade de imprensa é o instrumento mais poderoso para realizar, efetivamente, uma das grandes conquistas da civilização ocidental: a ideia de que o poder político, se pretende ser legítimo, deve estar submetido a limites e que o poder absoluto, como intuía lorde Acton, não é senão uma forma absoluta de corrupção. Quanto mais livre for a imprensa, mais limitado estará o exercício do poder e maior será a probabilidade de que nossas liberdades individuais permaneçam a salvo”, sublinhou o presidente.
O discurso de Oscar Arias tem a força da coerência. Na Costa Rica a democracia é sólida e operativa. Dois ex-presidentes, julgados e condenados por crime de corrupção, estão na cadeia. Guerra à impunidade e educação de qualidade fizeram daquele pequeno país um belo modelo de democracia possível. Trata-se do único binômio capaz de transformar uma sociedade. Crescimento econômico é importante. Mas sem ética, sem normas e sem lei, dá no que deu. O Primeiro Mundo está pagando a dura conta da orgia financeira e da irresponsabilidade do mercado. E nós, não obstante os bons indicadores da nossa economia, poderemos trombar com as consequências funestas de um populismo que encolheu a oposição, estimulou o cinismo, encurralou algumas togas e tenta algemar as redações.
O presidente da República, esgrimindo sua retórica direta, deu outro recado carregado de pragmatismo aético. Segundo Lula, nenhum dos vencedores das eleições de 2010 poderá fazer um governo “fora da realidade política”.
“Se Jesus Cristo viesse para cá e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão.” Lula não fez nada para mudar esse quadro. Ao contrário, seu estilo de governança fortaleceu o que de pior existe na vida pública brasileira. O oportunismo de Lula foi a arma de defesa de José Sarney. Mas o realismo presidencial, talvez num ato falho, levou Lula a reconhecer que seus aliados têm os traços de um Judas tupiniquim.
Para o antropólogo Roberto DaMatta, há um lado mais dramático em tudo isso. “Lula tem a virtude de falar claro”, diz ele. “Às vezes penso que ele não tem inconsciente. De perto, a declaração pode parecer horrível. De longe, é a constatação da nossa face dupla, das nossas cumplicidades com o partido que não ia roubar nem deixar ninguém fazê-lo, mas fez o mensalão; ressuscitou Sarney e quejandos, tem desmoralizado o Congresso; enfim, o nosso lado que odeia a lei valendo para todos – esse Judas dentro de cada um de nós que não quer mudar o “você sabe com quem está falando?””, conclui DaMatta.
O diagnóstico é duro, mas verdadeiro. Como lembrou alguém, existe um elo indissolúvel entre o político que rouba, o cidadão que ultrapassa o farol vermelho, o governante que confronta as normas e o assaltante que mata: todos deixaram de levar em conta a ética e a lei. E só há um modo de reverter essa distorção da nossa cultura: educação, exercício de cidadania, ética, liberdade de imprensa e fiscalização do poder.
O Brasil depende, e muito, da qualidade ética da sua imprensa e de sua indispensável força fiscalizadora.
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