A sanção presidencial à Lei n° 13.964/2019, criando o chamado “Juiz das Garantias”, vem provocando intensos debates na sociedade brasileira, tendo sido inclusive alvo de ações diretas de inconstitucionalidades, com pedido de liminares, junto à Suprema Corte. A questão é indiscutivelmente complexa e de alto interesse público, pois envolve inovação legislativa de considerável impacto judicial no tocante ao eficaz combate à aguda criminalidade brasileira. Por assim ser, caberá ao Alto Tribunal da República bem ponderar os valores e princípios de justiça que permeiam a Constituição federal, com vistas a bem equacionar a sinuosa novidade normativa.
Indo direto ao ponto, o artigo 1° da Lei n° 13.964/2019 assim pontificou: “Esta lei aperfeiçoa a legislação penal e processual penal”. Logo, se as inovações legislativas positivadas, contraditoriamente, representarem retrocessos ou impossibilidades ao sistema judicial vigente, estaremos diante de uma incongruência invencível que, por imperativo lógico-jurídico, recomendará a decretação de inconstitucionalidade material. Afinal, as palavras da lei têm consequências práticas, não sendo o juízo de constitucionalidade um mero exame retórico nem uma avaliação exclusivamente teórica.
Sabidamente, o modelo processual do Juiz de Garantias é, em tese, possível, tendo precedentes em diversos países europeus, como Itália e Alemanha. Todavia, não resolveremos o grave problema criminal brasileiro de frente para o Atlântico e de costas para a Rocinha. Frisa-se que a adoção acrítica de paradigmas estrangeiros – totalmente divorciados da realidade nacional – é um mal persistente de nossa política legislativa que, ao invés de pensar o Brasil, prefere o atalho das pueris soluções de empreitada, copiando leis redondas para aplicação em uma realidade quadrada. Por consequência, são numerosos os exemplos de festivos dispositivos legais condenados ao imponente museu das leis imprestáveis, inexequíveis ou substancialmente ineficazes.
Objetivamente, a criação do “Juiz das Garantias” rompe com a unicidade jurisdicional do juízo penal, criando um juiz competente para o controle da investigação e outro, para a subsequente fase de instrução e julgamento. Nos termos da lei, a competência do juízo investigatório “abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa” (art. 3°-C, caput, Lei 13.964/2019). Ou seja, para onde havia um único magistrado competente, agora requer-se dois, privilegiando-se a burocratização procedimental e não a celeridade, efetividade e a própria economia processual.
O mais impressionante é que a nova lei, ao abranger “todas as infrações penais”, simplesmente ignora o multifacetado sistema judicial brasileiro, repleto de Comarcas pobres e longínquas, muitas das quais de Vara Única. Ilustrando a estrutura de nosso aparelho de Justiça, o Instituto de Pesquisa Econômico Aplicada (IPEA), no estudo Mapa da Defensoria Pública no Brasil (2013), revelou que “o país tem hoje 2.680 comarcas, das quais apenas 755 (ou seja, 28%) são atendidas pela Defensoria Pública”. Em uma visão global mais recente, o Conselho Nacional de Justiça, no Relatório Justiça em Números (2018), informa que “o primeiro grau do Poder Judiciário está estruturado em 15.398 unidades judiciárias – um aumento de 20 unidades em relação ao ano anterior. Esse quantitativo é subdividido em 10.989 varas estaduais, trabalhistas e federais (71%); 1.606 (10,4%) juizados especiais; 2.771 (18%) zonas eleitorais; 13 auditorias militares estaduais; e 19 auditorias militares da União”.
Os dados acima são reveladores, bem demonstrando a ampla e difusa estrutura do Poder Judiciário brasileiro. É provável que, no correr dos anos, muitos déficits estruturais tenham sido amenizados, mas os fatos, especialmente no tocante às carências das defensorias públicas, expõem que temos inúmeras urgências prévias a exigir inadiável saneamento. Ou será que sem a justa defesa da população mais carente estaremos promovendo o eficaz combate ao crime com a consequente ressocialização pedagógica dos réus?
Será que deveríamos ter investido na sofisticação processual penal, onerando o sistema em 100% (onde havia 1 juiz, agora teremos 2), com os todos custos e complexidades inerentes à implementação da medida? Seria essa a primeira prioridade do aparelho de prevenção e repressão criminal brasileiro? Ou será que deveríamos ter investido tempo legislativo e dinheiro público no equipamento humano, material e moral das forças policiais do Estado? Aliás, sem uma boa investigação e inquérito, há como o processo penal terminar bem?
Sim, as perguntas poderiam prosseguir ao infinito, demonstrando que nova opção legislativa é absolutamente questionável. Como circunstância agravante, a referida Lei n° 13.964, publicada no apagar das luzes de 2019 (24 de dezembro), possui vertical impacto federativo, tendo substantiva incidência orçamentária nos Estados, muitos do quais com consabida dificuldade financeira. O mínimo que se esperava, então, era que a responsabilidade parlamentar informaria as respectivas fontes de custeio e operacionalização, até mesmo por imperativos constitucionais orçamentários e ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal, fixando prazo hábil para a competente adequação normativa. Infelizmente, não foi o que aconteceu.
Como se estivesse a viver um sonho, a lei dispôs que, “nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo” (art. 3°-D, parágrafo único). Indo adiante, foi determinado que o juiz das garantias “será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal”. E detalhe: a vacatio legis é de apenas 30 dias.
Ora, não é preciso ser um mago para antever que o milagroso “sistema de rodízio”, quando exequível, será fonte potencial de nulidades futuras, além de ferir a cláusula constitucional da celeridade e razoável duração dos processos (art. 5°, LXXVIII, CF), na medida que o juiz circulante nem sempre estará presente nas comarcas do raio de competência, prejudicando, com isso, o impulsionamento de medidas urgentes ou necessárias à legalidade das respectivas investigações criminais. Isso é claro sem contar todos os atrasos e problemas de locomoção que atingirão os magistrados em seus ciclos de rodízio pelas pulverizadas comarcas do interior brasileiro.
Mais de Sebastião Ventura
O Supremo e o dever da verdade
Objetos da política ou sujeitos da democracia?
Precisamos conversar sobre a Suprema Corte
Como se vê, a Lei 13.964/2019, embora imbuída das melhores intenções, é de difícil aplicação sistêmica nacional, à luz da acidentada e plural realidade brasileira. Sem cortinas, a lei foi absolutamente insuficiente na devida normatização e planejamento estrutural das fundas mudanças que a adoção do “Juiz das Garantias” provoca, de inopino, especialmente na matriz dos judiciários estaduais. Há, assim, sob ótica individual, aguda vulnerabilidade à garantia fundamental do devido processo legal (art. 5°, LIV, CF) com subsequente lesão ao Estado de Direito (art. 1°, CF), que faz do efetivo combate ao crime um instrumento de realização prática do princípio da legalidade para, ao final, elevar o alto objetivo republicano de uma “sociedade justa” (art. 3°, I, CF).
Por todas as suas dificuldades sistêmicas, seja pela carência de muitas comarcas do pobre interior nacional, pelas importantes consequências orçamentárias imprevistas aos Estados, pelos riscos ao bom trânsito e celeridade ao devido processo legal, pela exiguidade do prazo de vigência normativa, pelas complexas adaptações necessárias ao continental aparelho judicial brasileiro, a adoção do modelo do “Juiz das Garantias” se mostra, no momento, flagrantemente irrazoável frente às circunstâncias reais do Brasil. Talvez, quando o processo eletrônico seja uma realidade vertical, firme, seguro, unificado e definitivamente estabelecida, sem exceção, em todo território nacional, a novidade legal tenha razão de ser, existir e viver bem. Mas, por enquanto, não.
Sobre o necessário coeficiente de razoabilidade legal, já decidiu a Suprema Corte: “O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais” (Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2000)”. Aqui chegando, impossível antecipar como a Suprema Corte julgará as ações diretas que impugnam certas novidades problemáticas da Lei n°13.964/2019. Indubitável, no entanto, que fundamentos de inconstitucionalidade os há. No aguardar dos acontecimentos, sempre oportuno prestar homenagem à inteligência superior que faz pensar. Com a fina percepção do seu notável saber, o Professor Gustavo Zagrebelsky faz lembrar que “a justiça constitucional protege a república e por isso limita a democracia”. Será, então, a opção parlamentar do “Juiz das Garantias” um bem republicano em favor do povo ou apenas mais uma oportunista concessão aos poderosos?
Fonte: “Gazeta do Povo”, 14/1/2020