O Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) começou o ano com o pé no acelerador. Em sua primeira reunião, no mês passado, intensificou o ciclo de redução da taxa básica de juros para 0,75 ponto, o que fez a meta da Selic cair para atuais 13% ao ano. Na semana que vem, na segunda reunião de 2017, a expectativa do mercado é de que a autoridade monetária dê continuidade ao ciclo de cortes, uma das condições avaliadas como mais importantes pelo governo para ajudar na retomada do crescimento econômico. Se tudo ocorrer como o esperado pelos agentes financeiros, a taxa básica de juros deverá terminar o ano em um dígito, perto dos 9%. Mesmo assim, o país continuará tendo o maior juro real, descontada a inflação, do mundo.
“A grande doença macroeconômica brasileira é o juro alto. Não é uma doença monetária, mas fiscal. Ela expressa uma situação fiscal que saiu do controle e que limita tremendamente as ações do BC”, avalia Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos. A análise vem ao encontro da defesa do economista André Lara Resende, que escreveu um artigo para o jornal “Valor econômico” em que coloca em xeque um pilar da estabilização da moeda. “Temos de perseverar no caminho do equilíbrio fiscal, para que a chamada ‘taxa neutra’ também caia. A partir daí, poderíamos experimentar patamares de juros perto de 5%”, afirmou.
Em entrevista a “Época”, Franco também defende que há espaço para a redução do chamado spread bancário no Brasil, que é a diferença entre o que os bancos pagam para captar recursos e o que cobram do cliente. Mas, para que isso aconteça, ele diz que é preciso rever a quantidade de linhas de crédito subsidiadas, que pressionam os custos das instituições financeiras. “Toda vez que alguém toma um dinheiro no BNDES a uma taxa abaixo de mercado, há alguém na economia que paga uma taxa acima.” Leia trechos da entrevista.
Época – O governo do presidente Michel Temer conseguiu aprovar, no ano passado, uma proposta para limitar o avanço do gasto do governo, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do teto de gastos. Mas quase metade da despesa pública é com o pagamento de juros da dívida. Falta uma medida específica nesse sentido?
Gustavo Franco – O pesadelo do governo é o tamanho da dívida. Os gastos com juros da dívida pública são enormes. Estão entre os maiores do mundo. Tivemos durante 11 anos, entre 1998 e 2009, uma média de superávit primário de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB) e uma dívida líquida que caiu perto de 20% do PIB. Estávamos em um caminho prudente, mas desviamos a rota. Se tivéssemos ficado mais dez anos com o superávit primário naquele nível teríamos zerado a dívida pública, como fez o Chile. Seria maravilhoso se isso tivesse acontecido. Mas, infelizmente, não aconteceu.
Época – E por que não aconteceu?
Franco – Porque em 2009 entrou em cena a “nova matriz macroeconômica”. Esse foi um grande momento da irresponsabilidade nacional, em que as lideranças política e econômica decidiram que não havia mais a necessidade de um superávit primário. Acreditavam ser uma política equivocada. Houve uma trágica mudança de uma estabilidade que começou em um governo tucano e foi continuada por outro petista. Esses 11 anos mostraram que é possível a combinação simultânea entre austeridade, políticas de distribuição de renda e redução da dívida. Responsabilidade fiscal não é de direita, nem de esquerda. Nem ortodoxo, nem heterodoxo. É um imperativo ético.
Época – Em sua avaliação, a atual equipe econômica, comandada pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, tem atuado corretamente para reverter a herança deixada por Dilma Rousseff?
Franco – O ponto de partida é muito desfavorável. O estrago feito com as políticas heterodoxas irresponsáveis posteriores a 2009 foi horroroso. Hoje, a dívida líquida ultrapassa os 40%. Temos pelo menos uma década para trazer a dívida para onde ela estava em 2009. Para atingirmos o zero, precisaríamos de outra década. Ou seja, pelo menos 20 anos no total para zerar a dívida. Só a partir daí poderemos pensar em reconquistar o grau de investimento, retirado pelas agências de classificação de risco.
Época – Mas o senhor está satisfeito com a velocidade da aprovação de medidas?
Franco – Sempre se pode alegar que poderia ser mais rápido e contundente. Mas quem está no comando em Brasília tem uma ideia da viabilidade das ações. Quem está de fora não tem. Gostaria de ver um programa de privatizações mais agressivo, por exemplo. A União tem muitos ativos. Poderia abater parte da dívida com a liquidação deles. Ao mesmo tempo, reconheço que os progressos foram substanciais para um governo que começou de verdade há pouco tempo. Além disso, este ano se desenha favorável para a economia. Vamos ver se, com a reação da atividade, o positivo gera positivo. Podemos entrar num círculo virtuoso, se a recuperação for mais veloz que o esperado.
Época – Um dos sintomas dessa herança são os juros excessivamente altos. O assunto foi tema de um artigo recente do economista André Lara Resende. Qual a sua avaliação do texto?
Franco – A grande doença macroeconômica brasileira é o juro alto. Não é uma doença monetária, mas fiscal. Ela expressa uma situação fiscal que saiu do controle e que limita tremendamente as ações do Banco Central. O artigo do André contribui para uma conversa sobre o porquê os juros são tão altos no país – e não por que os juros são tão baixos lá fora. Não é o mesmo drama. Achei particularmente profundo e elucidativo o texto do Eduardo Loyo, ex-diretor do BC, que foi quem botou ordem na confusão. Ele foi o cara que anos atrás trabalhou esse assunto em todas as suas vertentes técnicas. E é quem tem a autoridade acadêmica para dizer que essas possibilidades exóticas de política monetária que o André levantou não têm nenhuma importância prática para o Brasil.
Época – O recuo das expectativas para a inflação foi acompanhado por uma queda nas estimativas para o juro. Hoje, o mercado cogita terminar o ano com a taxa básica a um dígito, em cerca de 9%. É um alvo possível?
Franco – O juro de um dígito não é um objetivo em si. A missão do BC é controlar a inflação. A autoridade monetária, em conjunto com o mercado, estima qual deveria ser a meta da Selic para se chegar ao fim do ano com a inflação dentro da meta. O resultado das estimativas atuais aponta para uma taxa de juro de 9%. Isso demonstra um enorme ganho de credibilidade do BC. Mas, vale ressaltar, que mesmo com 9% de juros e inflação de 4,5% temos um juro real de 5%. É ainda muito grande, sem paralelos no mundo. Temos de perseverar no caminho do equilíbrio fiscal, para que a chamada “taxa neutra” [patamar ideal de juros para que a economia cresça sem pressão inflacionária] também caia. A partir daí, poderíamos experimentar patamares de juros perto de 5%. Quando tentamos isso no passado, a “nova matriz econômica” não permitiu. O mínimo que atingimos foi um juro de 7,25%.
Época – Qual o tamanho da margem para a redução do spread bancário no país?
Franco – O assunto do spread [diferença entre as taxas que as instituições financeiras pagam para captar recursos e as que cobram do cliente] tem uma dimensão que, às vezes, fica esquecida: o crédito direcionado. Toda vez que alguém recebe um crédito direcionado subsidiado é um dinheiro que deixou de ir para o mercado livre. A taxa de juro é um pouco maior porque alguém pagou “meia-entrada”. Toda vez que alguém toma um dinheiro no BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] a uma taxa abaixo de mercado, há alguém na economia que paga uma taxa acima do mercado. Esse é um problema maior, mais profundo que o spread. Atualmente, metade do crédito brasileiro é direcionado. Isso precisa ser revertido. Se reduzirmos a Selic para perto de 7%, a diferença entre Taxa de Juros de Longo Prazo [TJLP] e a Selic começa a ficar pequena, pois o tamanho do subsídio diminui. Esse seria o momento para extinguir esse tipo de coisa. A meia-entrada passaria a ser o custo da entrada de todos.
Época – Diferentemente do governo anterior, Temer deu alguns passos na área microeconômica no ano passado. Como avalia o anúncio de medidas para desburocratizar e tentar reduzir o chamado custo Brasil?
Franco – Acredito que não houve nada relevante anunciado até agora. Só um vento, uma intenção de alterar alguns detalhes. É meritório, mas estamos em posições muito ruins no relatório Doing Business, do Banco Mundial, há anos. [Na última edição, o Brasil apareceu na 123ª posição de uma lista de 190 países]. O levantamento, com seus índices e subíndices, traz todo um roteiro que aponta o “como fazer” a melhoria de negócios. Geralmente, em tudo o que envolvem esferas do governo há dificuldades. O drama se repete na parte da carga tributária: no tamanho, na complexidade e no tempo gasto para cumprir obrigações. As estruturas são enormes para as empresas manterem suas obrigações tributárias. Reduzir essa complexidade geraria uma economia considerável. Esta equipe ainda não teve o tempo necessário para se estabelecer, e ter um pouco de calma, para pensar os temas micro nos detalhes. Eles requerem uma atenção maior e, às vezes, não sobra tempo, já que a urgência é resolver o desarranjo macroeconômico.
Fonte: “Época”, 16 de fevereiro de 2017.
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