Se fosse apontar uma definição simples, alegórica e filosófica sobre a taxa de juros, essa monumental patologia nacional, diria que é uma espécie de relação de troca, ou preço relativo entre o presente e o futuro. Esse é o teor de um belo livro de Eduardo Gianetti, intitulado “O valor do amanhã” e publicado em 2005, leitura muito atual.
Para os entendidos em matemática financeira, os juros aparecem como o “fator de desconto” utilizado para “trazer a valor presente” o que está no futuro. Os juros medem a distância econômica entre o hoje e o amanhã. Sendo assim, se o Brasil é o campeão mundial de juros, deve haver alguma coisa muito errada com o nosso futuro. É como se fôssemos também os líderes de miopia, absurdamente enviesados para gastos no presente, totalmente despreocupados em pagar a conta no futuro, pois vai ficar para outro governador, ou vamos descobrir a mina de ouro que foi prometida aos que vieram para cá em 1500.
A expressão desse estado de coisas, sua causa e seu reflexo, é a montanha de dívidas que já contratamos como nação em dívida mobiliária (títulos) e em obrigações futuras de natureza variada, a mais gigantesca das quais relacionada ao sistema previdenciário.
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Uma conta feita em 2007 para “trazer a valor presente” o déficit da Previdência feita por Fabio Giambiagi chegou a um número da ordem de 200% do PIB, mais que o dobro do valor da dívida mobiliária hoje.
Durante os anos de inflação alta nada disso era muito claro, pois o Estado pagava suas contas com papel pintado que perdia valor muito rapidamente, tributando os pobres ou os despossuídos de correção monetária.
Papel moeda não é dívida, e sua fabricação conforme a conveniência dos poderosos funcionava como “acelerador da experiência”, um “dopping”, um “meio pecaminoso” para o desenvolvimento, uma espécie de “pacto fáustico” que se torna insustentável e termina em 1994. A partir daí se estabelece uma dúvida fundamental sobre as finanças públicas: Como se dá o “conflito distributivo” depois da estabilização, quando desejos continuam maiores que as possibilidades, mas as novas instituições não permitem a inflação como solução?
Simples: dívida.
O conflito distributivo passa a ser intertemporal, e as vítimas passam a ser as gerações futuras.
As autoridades mantêm os velhos hábitos e se endividam como se fosse o mesmo que emitir dinheiro, pois quem vai pagar é o próximo governo, e assim vão deteriorando os termos de troca entre o presente e o futuro.
Os juros estão bem no centro dessas tensões, pois são a forma impessoal de onerar o futuro, o subproduto inevitável da miopia e da irresponsabilidade. Tal como a inflação, não se sabe bem quem é o culpado. É fácil enxergar o usurário, tal como o oligopólio (no caso da inflação), mas se fossem eles os responsáveis, um tabelamento resolvia, e nós tentamos muitas vezes sem sucesso. O problema está onde sempre esteve, nas finanças públicas, mas raramente as lideranças políticas conduzem o assunto para o terreno apropriado. Amiúde se empenham em ocultar o problema e sobretudo em modular seus efeitos.
Uma prática particularmente perversa é a de preservar alguns brasileiros melhores do que os outros dos efeitos dos juros altos ao inseri-los no mundo do crédito direcionado subsidiado. Assim, os cidadãos mais vulneráveis, mais relevantes e mais poderosos ficam protegidos do problema, tal como a correção monetária fazia, no tempo da inflação.
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Grosso modo, metade do crédito no Brasil é dessa categoria e custa cerca de 9% ao ano. A outra metade, o segmento “livre”, oferece crédito para as pessoas comuns a taxas médias em torno de 35% (algo como 45% para indivíduos e 21% para as empresas).
Não há spread bancário relevante para o crédito direcionado, portanto, é de se supor que o que existe para o crédito livre seja o necessário para cobrir os custos dessa “meia entrada” no mundo do crédito. É como se existissem dois mundos, a casa e a rua, o espaço do favor, da reciprocidade e do afeto, e, em oposição, a impessoalidade do mercado.
Antigamente, o Estado definia quem tinha acesso à moeda estável, hoje escolhe quem tem futuro.
Fonte: “Estadão”, 31/03/2019