O caso: moradora de um condomínio no Guarujá, litoral de São Paulo, e seus filhos foram proibidos de frequentar a piscina, o salão de festas e a brinquedoteca. Motivo: inadimplência, dívida já chegando a R$ 290 mil.
O caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma. O relator, ministro Luis Felipe Salomão, observou no seu voto: “Não há dúvida de que a inadimplência vem gerando prejuízos ao condomínio… (a moradora) está inadimplente desde 1998… E os autores possuem bens suficientes, em valores que superam os R$ 2,5 milhões”.
A ministra Isabel Gallotti acrescentou: “Quando se vive em condomínios, a inadimplência causa vários transtornos”. E manifestou sua “perplexidade”, isso mesmo, “perplexidade”, que a inadimplente possa usar áreas que demandam manutenção cara.
Na mesma direção, o ministro Marco Buzzi cravou: “Para usar essa piscina, esse direito todo, alguém tem de pagar”.
Para uma pessoa normal, a decisão estava tomada.
Mas a Justiça brasileira não é normal.
Acreditem: por unanimidade, o STJ decidiu que o condomínio não poderia impor aquelas restrições. Ou seja, eis a superior decisão: embora cause prejuízo a todos os demais moradores, embora cause perplexidade, embora pegue uma carona grátis, o condômino inadimplente tem direito de usar todos os benefícios do condomínio, mesmo que não pague por isso há 21 anos.
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Como disse o ministro Buzzi, “alguém tem de pagar”. E o STJ mandou a conta para os trouxas que pagam em dia.
O argumento: a restrição ao uso da piscina viola o direito de propriedade e a dignidade humana.
Mas o Código Civil diz que o condômino inadimplente não tem direito de participar nem de votar nas assembleias. Claro que se trata de um limite ao direito de propriedade. Só que essa norma tem que ser interpretada “restritivamente”, observou o relator.
Então, ficamos assim: negar o direito do inadimplente de votar nas assembleias dos proprietários, tudo bem. Negar o sagrado mergulho na piscina paga pelos outros, aí trata-se de uma afronta ao direito de propriedade e à dignidade humana.
Sei que muitos leitores devem estar pensando: onde está a pegadinha?
A pegadinha é a imensa insegurança jurídica que persiste no Brasil. Isso inclui desde as instâncias e o tempo que os tribunais tomam para resolver — o caso vem de 1998, foi parar no STJ e ainda não terminou — até o teor das decisões que não resistem à mais simples lógica.
Vamos falar francamente: numa Justiça minimamente eficiente e garantidora do cumprimento das leis e dos contratos, esse caso não passaria do primeiro passo. Imagino o juiz, perplexo: a senhora nunca paga o condomínio e quer que a Justiça lhe garanta o direito de nadar na piscina dos outros que pagam?
Não se trata de um caso fora do padrão. A Justiça brasileira manipula o conceito de direito de propriedade com frequência, passando por cima de leis e contratos, com o objetivo de “fazer justiça” — objetivo vago, que varia conforme a orientação doutrinária e ideológica do juiz.
Dignidade humana justifica tudo. De onde tiraram que nadar numa piscina particular, para a qual não se paga, é manter a dignidade?
Não faz muito tempo, o mesmo STJ dizia que o dono de uma loja não poderia dar desconto ao cliente que pagasse em dinheiro. Precisou o Congresso Nacional aprovar uma lei nova — uma das leis mais ridículas — dizendo que comerciante e comprador poderiam negociar o preço livremente.
E nem é bom se lembrar disso. É bem capaz de alguma corte declarar que essa lei é ilegal.
E tem outros trouxas nessa história: os contribuintes brasileiros que pagam seus impostos regularmente, impostos que financiam a Judiciário —onde se encontram os maiores salários do funcionalismo.
No STF
E por falar nisso, o Supremo Tribunal Federal deve decidir hoje se a Petrobras, uma empresa pública colocada no mercado, tem o direito de vender uma subsidiária transportadora de gás.
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Isso mesmo: um caso de Suprema Corte, como se não tivesse mais nada para resolver.
Fonte: “O Globo”, 30/05/2019