Espírito de corpo é a tradução em português para a expressão francesa “esprit de corps”. Resumidamente, significa um sentimento de devoção, quase religiosa, de pessoas de determinado grupo aos interesses de sua categoria social ou profissional. É muito comum nas forças armadas, que costumam incentivar em seus membros o espírito de solidariedade, lealdade e fidelidade perante os demais. Tal sentimento, principalmente em tempos de guerra, pode significar a diferença entre a vitória e a derrota. Se há uma frase que o exprime de forma quase perfeita é: “um por todos e todos por um”.
Infelizmente, essa devoção, tão necessária à preservação da tropa durante as batalhas contra os inimigos, acabou sendo trazida para a vida social em tempos de paz, causando os mais diversos prejuízos às sociedades. Os exemplos mais notórios são as famigeradas guildas.
Há setores, entretanto, onde o espírito de corpo é mais deletério e, nem de longe, deveriam deixar-se contaminar por ele. Um desses setores é o judiciário, especialmente por ser ele o responsável direto pela manutenção da isonomia, ou melhor, pela igualdade de todos perante a lei. Vejam, por exemplo, este caso, ocorrido no Rio de Janeiro, noticiado recentemente pelo jornal Extra:
A 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve a decisão de primeira instância que condenou uma agente de trânsito da Operação Lei Seca a pagar R$ 5 mil de indenização ao juiz João Carlos de Souza Correa.
Em 2011, ao flagrar o magistrado dirigindo um veículo sem placas identificadoras e sem a Carteira Nacional de Habilitação, a funcionária teria afirmado que o veículo deveria ser apreendido. Ele, que voltava de um plantão noturno, se identificou como juiz de direito e ouviu da policial que “juiz não é Deus”.
O processo foi impetrado pela agente, que exigia indenização do juiz, alegando que ele tentou receber tratamento diferenciado por causa da função do cargo. A juíza responsável, Mirella Letízia, considerou, no entanto, que a policial perdeu a razão ao ironizar uma autoridade pública e reverteu a ação, condenando a agente a pagar a indenização.
De acordo com a sentença do desembargador José Carlos Paes, “a autora, ao abordar o réu e verificar que o mesmo dirigia veículo sem placa de identificação e sem portar carteira de habilitação, agiu com abuso de poder, ofendendo o réu, mesmo ciente da relevante função pública desempenhada por ele. (…) Não se olvide que apregoar que o réu era “juiz, mas não Deus”, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa para a sociedade”.
Fosse outro ser humano qualquer no lugar do ilustre magistrado – um advogado, engenheiro, médico, professor ou mesmo um senador da república (vide caso semelhante ocorrido com o senador Aécio Neves) –, será que o desembargador teria tanto empenho e zelo em defender as relevantes funções desses profissionais para a sociedade? Não creio. Ademais, quê grave ofensa, afinal, pode haver naquela frase, além de ferir o orgulho do excelentíssimo doutor?
Cabe enfatizar que, no caso, o Juiz não estava ali no desempenho de suas funções. Além disso, se havia uma autoridade naquele local, esta era a policial, não o magistrado. Assim, independentemente de quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, ou seja, de quem disse o quê primeiro, a sentença proferida nos parece infeliz. Não se justifica dar voz de prisão a alguém por conta de uma mera ironia ocasional, nem, muito menos, condenar alguém a indenizar outrem por conta dessa mesma ironia.
Enfim, é triste ver a justiça de Pindorama subordinada a interesses corporativistas.
Fonte: Instituto Liberal, 04/11/2014.
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