Publiquei em maio uma coluna em O Estado de S. Paulo e O Globo intitulada “Monstros tristonhos” , que abordava os dilemas das comissões raciais criadas pelas universidades para “certificar” a raça de candidatos inscritos nos sistemas de cotas.
A coluna, de menos de 6 mil caracteres, criticava um conceito expresso pelo antropólogo Kabengele Munanga, classificando-o como charlatanismo. Munanga replicou com um texto de quase 24 mil caracteres, que enviou ao Estadão solicitando direito de resposta. Como, naturalmente, o jornal não lhe daria algo como duas páginas inteiras, Munanga acusou a imprensa de parcialidade e distribuiu seu tratado por sites racialistas.
Na minha coluna, citei um trecho da introdução assinada por Munanga a um livro racialista. Eis a passagem:
“Os chamados mulatos têm seu patrimônio genético formado pela combinação dos cromossomos de “branco” e de “negro”, o que faz deles seres naturalmente ambivalentes, ou seja, a simbiose (…) do “branco” e do “negro”. (…) os mestiços são parcialmente negros, mas não o são totalmente por causa do sangue ou das gotas de sangue do branco que carregam. Os mestiços são também brancos, mas o são apenas parcialmente por causa do sangue do negro que carregam.”
Foi isso que classifiquei como charlatanismo. Eu não escrevi que Munanga é um charlatão. Ele resolveu vitimizar-se para circundar o tema em discussão. Contudo, qualquer aluno razoável de ensino médio sabe que não existem cromossomos raciais ou essas “gotas de sangue do branco” nem aquele “sangue do negro” mencionados sem intenções metafóricas. A passagem evidencia que Munanga enxerga uma humanidade dividida em raças biológicas, como fazia o “racismo científico” do século XIX.
Eu acho que isso é grave, quando se sabe que ele é professor titular do Departamento de Antropologia da USP. Mas Munanga está tão aferrado a seus anacrônicos preconceitos que repete a bobagem na réplica. Depois de, curiosamente, sugerir que não li o (péssimo) livro racialista citado, escreve o seguinte: “nada inventei sobre a ambivalência genética do mestiço que não estivesse presente no próprio título da obra Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-branco.” De fato, o que ele fez foi sintetizar em linguagem “biológica” os preconceitos do próprio livro, conferindo-lhes uma credibilidade derivada de sua posição acadêmica.
O livro propõe que “o mulato”, essa entidade abstrata do pensamento racial, seja retificado, abandonando sua suposta “ambivalência” para assumir-se como “negro”, uma outra entidade abstrata do pensamento racial. É, também, o programa de Munanga, expresso numa passagem particularmente abominável:
“Se no plano biológico, a ambigüidade dos mulatos é uma fatalidade da qual não podem escapar, no plano social e político-ideológico eles não podem permanecer (…) “branco” e “negro”; não podem se colocar numa posição de indiferença ou de neutralidade quanto a conflitos latentes ou reais que existem entre os dois grupos, aos quais pertencem, biológica e/ou etnicamente.”
Na concepção da “luta de raças” de Munanga encontram-se os fundamentos do programa de polarização do Brasil entre “brancos” e “negros”, com a supressão política de tudo que não possa ser encaixado nessas duas categorias “puras”. O pensamento racial é, aqui como alhures, uma busca da pureza. Os racialistas brasileiros não suportam a imagem de um país que se entende e define como misturado. Esse é o tema do debate que Munanga enterra sob toneladas de frases ocas.
(Publicado em NoraceBR)
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