O métier do cientista social equivale em larga medida ao de comentadores que tentam prever o resultado de concursos de beleza. A analogia não é minha —roubo-a de John Maynard Keynes (1886-1946), que a utilizou na sua Teoria Geral (1936).
A estória de Keynes refere-se a um concurso organizado por um jornal hipotético cujos participantes deveriam escolher —com base nas fotografias de centenas de candidato(a)s— os seis mais atraentes. Quem acertasse ganhava prêmios.
Há aqui duas lições. A primeira é reconhecer a distinção entre a preferência do analista e a dos demais, cuja agregação determinará o que irá acontecer para além daquela. Apostar no que desejamos que aconteça é fonte permanente de autoengano. Mas seu inverso —apresentar conjeturas falsas deliberadamente como previsões—, por seus efeitos políticos, é ainda mais danoso, porque compromete a integridade do métier do analista.
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A segunda lição é que não se trata apenas da opinião pura e simples dos demais participantes, mas da percepção de que têm sobre a avaliação que a média das pessoas faz (as quais estão sujeitas a vieses). (Há aqui o risco de regressão infinita, mas há soluções técnicas para o problema).
Keynes usa a analogia para entender a bolsa de valores: o que um indivíduo pensa sobre o valor de uma ação não importa, mas, sim, o que os demais pensam a respeito; ou, mais importante, que previsões fazem sobre a avaliação média do mercado sobre a ação.
Na política observamos a mesma coisa; a intuição a respeito remonta a Maquiavel. Nas eleições de 2018, por exemplo, o voto útil expressou um movimento para antecipar a avaliação que os demais atores fariam.
A questão é complexa, porque há dois aspectos em jogo: a percepção das pessoas e uma conjetura ou modelo sobre o que acontece coletivamente devido ao fato de que elas pensam da forma que pensam (aí incluídos vieses). O resultado agregado pode inclusive gerar efeitos perversos. O concurso de beleza pode até resultar paradoxalmente na escolha do mais medonho.
Adivinhar o futuro foi sempre visto com muita desconfiança. De fato, fazer previsões oscila entre húbris e charlatanismo, mas elas são inevitáveis e devem ser vistas como hipóteses fundamentadas.
Não é à toa que Dante, na “Divina Comédia”, colocou os adivinhadores no Oitavo Círculo do Inferno, com a cabeça torcida, voltada para as costas, com as lágrimas molhando as nádegas, de maneira que não conseguem olhar para a frente.
A previsão só é honesta quando seus pressupostos são explicitados e sua metodologia é clara. As ciências sociais progrediram muito, mas o resultado é ainda frustrante. Provavelmente sempre o será.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 6/1/2020