Tudo indica que a Coreia do Norte já tem um novo ministro da Propaganda. É um astro de reality show, só fala inglês e tem cabelo laranja. Donald Trump elevou Kim Jong-un à condição de estadista e parceiro dos EUA, cumulou-o de elogios, firmou um documento de princípios que reproduz a fórmula cunhada pela Coreia do Norte e, finalmente, fez uma inaudita concessão unilateral voluntária.
O termo “histórico”, banalizado pelos veículos de imprensa, aplica-se efetivamente ao encontro entre Trump e Kim –mas por razões inesperadas.
Do texto do comunicado conjunto salta o compromisso com a “desnuclearização da península Coreana”. Utilizada por Kim no seu encontro com o presidente sul-coreano Moon Jae-in, no final de abril, a expressão é uma senha norte-coreana para exigir a remoção do chamado “guarda-chuva nuclear” americano, que protege a Coreia do Sul e a retirada das tropas dos EUA estacionadas no país aliado desde a Guerra da Coreia (1950-53).
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A exigência ritual americana de “desmantelamento completo, verificável e irreversível do arsenal nuclear da Coreia do Norte” não aparece no comunicado. Kim não cedeu um só milímetro; Trump recuou quilômetros.
Mais de quatro décadas atrás, na valsa da reaproximação dos EUA da China, Nixon não transformou os direitos humanos numa muralha contra a diplomacia –mas não renunciou ao dever de mencioná-los.
No Comunicado de Xangai, a declaração conjunta sino-americana de 1972, os pontos de acordo estavam precedidos por um elenco de divergências –entre elas, as referências americanas à “aspiração pela liberdade” e uma defesa das “liberdades individuais”.
Trump, em contraste, assinou um documento que silencia sobre os direitos humanos, e qualificou o ditador norte-coreano como “um homem muito talentoso” que “ama profundamente seu país”. O país amado por Kim é uma tirania feroz que encarcera mais de 80 mil dissidentes em campos de trabalho forçado. No Brasil, coerentemente, os adeptos incondicionais de Bolsonaro são, também, ardorosos admiradores de Trump.
Numa insólita entrevista concedida após o encontro, o presidente americano escolheu os adjetivos “provocativos” e “inapropriados” para se referir aos exercícios militares conjuntos conduzidos anualmente pelos EUA e a Coreia do Sul, ecoando termos usados rotineiramente pela própria Coreia do Norte. Das palavras, passou aos atos, prometendo suspendê-los de imediato.
A ruptura da aliança militar entre os EUA e a Coreia do Sul é uma meta estratégica da Coreia do Norte –e da China. Quando, em troca de nada, Trump anuncia a suspensão dos exercícios conjuntos, está dizendo que os EUA desprezam os compromissos geopolíticos assumidos com seus aliados. Os sul-coreanos e os japoneses interpretarão a mensagem como um alerta de que a segurança oferecida pela “Pax Americana” tem seus dias contados.
O espetáculo midiático protagonizado por Trump em Singapura é o maior golpe jamais desferido contra o regime de não proliferação nuclear. “A posse de um arsenal nuclear compensa –persiga-o até o fim, custe o que custar”– eis a lição dele emanada.
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Iraque e Líbia: os regimes que abdicaram da busca de armas nucleares foram derrubados. Irã: o regime que congelou seu programa nuclear, submetendo-se a inspeções intrusivas, sofre a reimposição de sanções americanas. Já a Coreia do Norte, que testou mísseis intercontinentais e uma bomba de hidrogênio, ganhou o estatuto de interlocutor privilegiado da maior potência mundial.
A caminho de Singapura, Trump converteu a reunião de cúpula do G7 em palco de guerra verbal, anunciou a cobrança de tarifas protecionistas contra os aliados prioritários dos EUA e cobriu de insultos o chefe de governo do Canadá. O francês Macron ensaiou até a proposta de redução do G7 a G6. O paraíso de Kim corresponde ao inferno da ordem ocidental do pós-guerra.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 16/06/2018