Um famoso historiador vizinho certa vez qualificou o peronismo como o “fato maldito da política argentina”. Leve-se em consideração que ele era peronista, de modo que não havia na qualificação nenhum espírito de aniquilação do grupo ao qual pertencia. Era a simples constatação de que, a partir de 1943, quando Perón irrompeu na cena local, o país passou a ficar dividido furiosamente entre peronistas e antiperonistas, divisão que, com as devidas adaptações associadas à diversidade de momentos históricos, perdura até hoje, mais de 70 anos depois. Alfonsín fez uma tentativa — fracassada — de superação dessa dicotomia e nos anos Menem, marcados por outras questões, houve alguma mitigação desse antagonismo, mas o divórcio entre uma parte do país e a outra ressurgiu em proporções alarmantes nos anos Kirchner, dilacerando amizades e até mesmo dividindo famílias. O magnífico livro de Osvaldo Soriano “No habrá más penas ni olvido” narra em forma de tragédia uma sucessão de episódios associados às lutas internas dentro do “justicialismo” — uma fissura dentro da fissura do país — que, sem chegar às proporções apocalípticas da Síria de hoje, lembra um pouco esse drama atual. Ele mostra como divergências insanáveis podem levar a explosões de ódio entre membros de um mesmo povo, nascidos no mesmo lugar. A história argentina está repleta de páginas negras associadas a perseguições de um grupo por parte de outro, que arranca com as disputas entre “unitários” e “federales” no século XIX, continua com os crimes da “Patagônia rebelde” no começo do século XX, com o despotismo nada esclarecido dos dois governos de Perón entre 1945 e 1955, com os assassinatos da Revolução Libertadora pós-1955 e com o banho de sangue dos anos 70. A tradição conciliatória brasileira, com toda sua carga de cinismo, assemelha-se a um verdadeiro conto de fadas, comparada com esse retrospecto.
Cristina Kirchner, mais do que Nestor, ressuscitou a linguagem da divisão, do cisma entre o “nós” e o “eles”, do antagonismo entre os “setores nacionalistas” e o “entreguismo”, entre o “povo” e as “elites” — na linguagem local, “as oligarquias” — e entre o governo e os “grupos destituintes”. A lógica que um jornalista certa vez definiu como “tentar sempre matar um mosquito com uma bala de canhão” levou a que a sociedade se acostumasse a viver sobressaltada pela perspectiva de conflitos maiúsculos, nos quais parecia que a cada momento batalhas épicas definiriam o futuro do país. Foi nesse contexto que um número cada vez maior de analistas passou a se referir à figura da grieta, isto é, a “fenda” que dividiu a sociedade e o panorama político argentino em campos aparentemente irreconciliáveis. A noção de que com quem pensa diferente não se pode sequer se sentar para tentar um acordo, sob pena disso ser considerado como uma espécie de “crime de lesa-pátria”, instaurou-se perigosamente no cotidiano de nossos vizinhos.
Brasil
O Brasil, nos últimos anos, passou a incorporar traços cada vez mais evidentes desse tipo de atitude. Também aqui passamos a ver a figura da grieta presente nos posicionamentos de um número crescente de indivíduos, de parte a parte. A ideia de que pessoas podem divergir como num jogo de futebol, sem prejuízo de que, encerrada a partida, todos se sentem à mesma mesa cedeu espaço aos xingamentos raivosos tão comuns nos guetos da internet. Cinco minutos de qualquer percorrida pela seção de comentários dos sites abertos mostram isso de forma eloquente.
É preciso superar esse tipo de dicotomias — e isso requer um esforço de todos. Há três razões que recomendam a mudança. Primeiro, porque esse clima faz mal aos indivíduos: não é bom nutrir sentimentos de ódio por ninguém e, muito menos, em relação àqueles que nasceram no mesmo solo, habitam o mesmo lugar e falam a mesma língua; isso simplesmente não é saudável. Segundo, porque num contexto de fragmentação política, o diálogo é ingrediente fundamental para que sejam alcançados acordos em benefício do interesse comum. E terceiro, porque certo grau de consenso é importante para forjar um ambiente favorável ao investimento. O novo governo tem dado provas de que está consciente da importância do tema. Seria importante evitar que do outro lado encontre apenas uma retórica incendiária.
Fonte: O Globo, 10/10/2016.
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