Emergências sempre foram excelentes pretextos para erodir as salvaguardas da liberdade individual. Esse aviso feito por Hayek há muitos anos tornou-se bastante atual, com as pressões enormes, da parte de políticos astutos e de economistas com parafusos frouxos, para que o estado tome as rédeas da economia e afunde o pé no acelerador da máquina, em resposta aos efeitos devastadores da pandemia.
Todos conhecem a fábula atribuída a Esopo e recontada por La Fontaine, em que a lebre, sabendo-se mais rápida, desafia a tartaruga para uma corrida que acaba perdendo por excesso de confiança, já que, resolvendo dormir, não se dá conta de que a oponente aproxima-se perigosamente da linha de chegada. Quando acorda, assusta-se e começa a correr o mais depressa que pode, tentando a todo o custo, mas sem êxito, ultrapassar a adversária. Um velho e belo exemplo para as crianças, de exaltação à perseverança e de condenação da petulância.
Sempre que se configura algum contratempo relevante na economia, ressurgem narrativas fantásticas desse tipo, que demonstram incrível falta de conhecimento de como as coisas funcionam no mundo econômico: os surrados argumentos segundo os quais é melhor combater crises do porte da atual com a criação emergencial de demanda por parte do governo, na crença de que a oferta vai acompanhar esse crescimento e, assim, a economia vai sair do purgatório e ir direto para o céu.
Esse passe de mágica parece supor que a tartaruga – a oferta -, sabidamente mais lenta, desafie a lebre – a demanda –, reconhecidamente mais veloz e que não dorme, e sempre saia vencedora, como na fábula.
É óbvio que o objetivo de todos é o crescimento sustentado, caracterizado por um aumento contínuo da capacidade produtiva ou oferta. Ora, mas não se pode desconhecer que esse é necessariamente um processo de longo prazo, porque requer, primeiro, formação de poupança; segundo, transformação dessa poupança em investimentos e, por fim, um longo período de maturação dos projetos, até que se transformem em estoque efetivo de capital e, portanto, em produtos – mais bens e serviços nos mercados. Em outras palavras, a oferta é gigantescamente lenta por sua própria natureza. E tende a ser ainda mais vagarosa em um país em que são necessários meses para se obter autorização para abrir empresas, as cargas tributária e previdenciária são punitivas para o empreendedorismo e para a geração de empregos e as mudanças nas regras do jogo são frequentes.
Já a demanda, também por definição, é sempre mais veloz do que a oferta, porque resulta das políticas monetária, fiscal, cambial, salarial e de políticas de rendas, como os programas assistencialistas e o auxílio emergencial para amenizar os efeitos da pandemia. Basta, por exemplo, para usarmos a conhecida imagem de Milton Friedman, que o “helicóptero” do Banco Central despeje moeda sobre o país – como, aliás, vem fazendo – para que, mantida constante a relação entre consumo e poupança, consumidores e empresas aumentem imediatamente os seus gastos. Quando se trata de gastos públicos, a velocidade da demanda e os danos daí resultantes costumam ser maiores. Sim, a lebre estatal, quando se trata de gastar, especialmente o nosso dinheiro, é mais rápida do que o Hamilton.
É claro que em situações atípicas e desconhecidas como a deste ano, de choques expressivos de caráter mundial, que nasceram do travamento das cadeias de produção e que, portanto, vieram da oferta, mas que depois se propagaram pela demanda, há algum sentido em esperar que medidas emergenciais de estímulos a ambas produzam temporariamente algum oxigênio necessário para que a atividade econômica continue a respirar. Porém, quando deixam de ser emergenciais e se tornam rotineiras, essas ações de intervenção do estado na ordem econômica equivalem à suposição, falsa, de que a tartaruga vai sempre conseguir acompanhar a velocidade da lebre, do início ao fim da corrida e que vão cruzar a linha de chegada juntas, talvez até de mãos dadas.
São bastante preocupantes algumas propostas escalafobéticas que têm surgido desde que os brasileiros passaram a lavar as mãos com mais cuidado e a esfregá-las com álcool gel dezenas de vezes por dia. Refiro-me às sugestões de extinção do teto de gastos, de estender o período do auxílio emergencial e ao conto do vigário da “teoria monetária moderna”, que propõe a criação permanente de moeda e a abolição definitiva de qualquer preocupação com o equilíbrio fiscal e o endividamento interno. Extravagâncias desse tipo, quando partem de políticos – como, por exemplo, a daquele ministro que queria um novo “plano Marshall” – são compreensíveis, especialmente quando há eleições à vista, embora condenáveis. Mas, com toda a franqueza, economistas que sustentam “coisas” desse tipo, todas com séculos de fracassos constatados, mostram que seu problema não é de parafusos frouxos, é pior, bem pior, é de ausência completa de parafusos em suas cabeças…
É por isso que, no mundo inteiro, todas as tentativas de se combater inflações mediante políticas de estímulo à oferta e de promover “crescimento” por meio de aumento da demanda deram com os burros, cavalos e asnos n´água. Não há um solitário caso de êxito. O máximo que se consegue é um período de expansão efêmero, porque não é baseado em novos investimentos, mas em mera utilização de capacidade ociosa. Ao cabo de alguns meses, inevitavelmente, a tentativa de expulsar a natureza fracassa e a lebre ultrapassa a tartaruga, ou seja, surge um excesso de demanda que, também ao fim de algum tempo, se for alimentado por bancos centrais cujos diretores julguem equivocadamente que sua função é fixar taxas de juros “baixas” para promover o “crescimento”, resulta em inflação; e esta surge tão mais depressa quanto maiores forem as expectativas de que vai surgir.
Quando viajamos para a Europa no final do ano, colocamos roupas pesadas em nossas malas, mas, se nosso destino é o Nordeste, escolhemos vestimentas leves. Da mesma forma, quando os agentes econômicos esperam – pela falta de coordenação entre as políticas fiscal e monetária – inflação no futuro, passam a agir defensivamente: quem vende aumenta imediatamente os seus preços, na esperança de ganhar mais e quem compra aceita pagar preços mais elevados hoje porque receia ter que pagar ainda mais caro amanhã. É um fenômeno magistralmente analisado por Mises e outros expoentes da Escola Austríaca desde o início do século XX e estudado rigorosamente na mainstream economics por Robert Lucas e os economistas da Escola de Expectativas Racionais, a partir dos anos 70, em que, pela ação humana racional dos indivíduos e empresas, o futuro, em uma tentativa de defesa dos agentes econômicos, é antecipado para o presente.
Que tal dizer isso de outro jeito? Teorias estrambóticas que propõem a “permanência da emergência”, que são mais apropriadas para estantes de ficção científica do que para as seções de Economia em livrarias e bibliotecas, entre muitas outras falácias, não dão importância aos fatos de que:
1. recuperação de uma crise é um alho e crescimento sustentado é um bugalho;
2. a inflação deve, sim senhor, ser uma preocupação permanente; e
3. basta observar o comportamento dos indicadores de oferta monetária para concluir que a inflação já está acontecendo há tempos e que a adoção de suas sugestões implicará a explosão da inflação de preços (que eles, equivocadamente, interpretam como sendo a inflação).
As reformas liberais, especialmente a administrativa, a tributária, a modernização das instituições para desobstruir as atividades econômicas privadas, a abertura econômica, as desestatizações, a desburocratização, a busca por maior produtividade e outras são urgentes, para que caiam gastos dispensáveis do Estado e, portanto, a relação dívida interna/PIB volte a cair, como já estava acontecendo antes da pandemia e a taxa de juros permaneça em níveis baixos, a tartaruga fique mais veloz, a lebre não precise lá na frente parar para esperar a tartaruga e a economia possa crescer sem ameaça de inflação.
Fonte: “Site Prof. Ubiratan Jorge Iorio”, 02/9/2020
Foto: Divulgação