A lealdade à Constituição é um pressuposto fundamental para a sobrevivência do jogo democrático. Neste domingo (26), diversos grupos e facções irão às ruas defender as reformas propostas pelo governo Bolsonaro & Filhos. Os mais radicais, movidos pela ideia de que o “país é ingovernável”, também reivindicarão o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, além de uma imediata intervenção militar. Essas vindicações abestalhadas, felizmente, parecem ter afastado os liberais das manifestações. Até o presidente, ontem simpático à ditadura e à tortura, viu-se obrigado a criticar a convocação.
Isso é bom, mas não chega a ser uma garantia de que a Constituição não esteja ameaçada. O enredo do populismo autocrático é mais sinuoso e sofisticado do que o dos autocratas do passado, com seus tanques. No populismo contemporâneo, o lastro eleitoral e as prerrogativas institucionais são utilizadas como armas para fragilizar os limites constitucionais ao exercício do poder, os procedimentos de participação da sociedade, as regras de transparência, as garantias do estado de direito e, em especial, os direitos de grupos demonizados pelo regime, que podem ser imigrantes, ativistas, indígenas ou “inimigos” de toda ordem.
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Quando os novos populistas dispõem de ampla maioria parlamentar, as emendas constitucionais tendem a ser a ferramenta natural para se subtrair da Constituição sua essência garantista. Aqui, a falta de uma maioria parlamentar e a própria disposição das instituições, que exigem um alto grau de consenso político para a promoção de mudanças, têm servido de anteparo a medidas mais constitucionalmente perversas.
O que temos assistido é um ataque multifacetado e difuso ao sistema de direitos que, a bem da verdade, jamais chegou a se consolidar no Brasil. A violência contra indígenas, mulheres, negros, homossexuais e suspeitos em geral, para não dizer da negligência em relação aos direitos a uma existência digna, como trabalho, saúde e educação, não constituem uma invenção deste governo. O que há de novo é uma tentativa de legitimar o arbítrio; transformando o que antes era violação em algo legal, ou simplesmente eliminando ou fragilizando os mecanismos de apuração e fiscalização, de forma a que violadores fiquem isentos de qualquer responsabilidade perante a lei. Como se o direito tivesse um dono, e dele pudesse fazer o que quer.
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Múltiplas são as estocadas institucionais, tanto federais como estaduais, voltadas a provocar uma paulatina erosão das garantias constitucionais. Cito apenas algumas: desmonte das estruturas de combate ao trabalho escravo; desprezo pela Convenção 169 da OIT, que assegura direitos essenciais dos povos indígenas; ampliação das hipóteses de exclusão de punibilidade de agentes de segurança; veto ao comitê contra a tortura e proposta de fechamento da Ouvidoria da Polícia, em São Paulo; eliminação dos conselhos de participação da sociedade civil na administração federal; interferência na autonomia universitária; ampliação do acesso e porte de armas contra a lei; saída do pacto global de imigração; isso sem falar no patrocínio e aumento às execuções extrajudiciais, especialmente no Rio de Janeiro.
Essas são apenas algumas amostras do que Kim Scheppelet chama “legalismo autoritário”. Liberais e progressistas precisam deixar claro que aquilo que os separa não suplanta o que têm em comum: a lealdade ao constitucionalismo democrático.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 25/05/2019