O mercado sempre funciona, a sociedade sempre encontra os meios de produzir mercadorias e serviços e de distribuí-los. Pode ser dentro do sistema legal ou fora dele. Mas sempre haverá algum tipo de regra, legal ou ilegal, formal ou informal, explícita ou implícita.
Havia na Rocinha mais de uma operadora de TV a cabo, atendendo à demanda da população local. Tudo informal, ilegal ou clandestino, em relação ao sistema institucional vigente fora da Rocinha. Tratava-se do “gatonet”, controlado pelo tráfico.
Lá dentro, porém, do ponto de vista da população, a operação do cabo não era clandestina. Todos sabiam onde ficava, contratavam a assinatura, pagavam as mensalidades e recebiam os serviços, incluindo a instalação dos equipamentos.
Por outro lado, todo mundo sabia que se tratava de um “gato” – ou seja, que a operadora local estava simplesmente roubando o sinal de companhias legalmente instaladas no país, que pagam os impostos e os custos da formalidade, como a contratação com carteira assinada.
E então, como ficamos? Os assinantes, as pessoas, os moradores da comunidade são culpados pela utilização daquele serviço? É a mesma situação das pessoas que compram CDs e programas de computador piratas?
Parece um pouco diferente. Primeiro, lá na Rocinha, o único sistema disponível era o gatonet, já que o legal simplesmente não chegava. Depois, não havia qualquer tipo de repressão, dada a ausência do Estado. Logo, era algo assim tacitamente consentido. Ou seja, caímos naquele terreno em que a pessoa utiliza um serviço que sabe ilegal, mas o faz por não ter opção.
Diferente, portanto, do consumidor que adquire produtos piratas, tendo a altenativa da legalidade. Mas o que fazer agora? A Rocinha pacificada tem de ser também a Rocinha legal, em todos os aspectos. Não pode funcionar meio legal, meio no crime. A questão é: como fazer a transição. Complicação extra e crucial: a formalidade no Brasil é muito cara.
De um lado, portanto, praticamente todas as atividades econômicas na Rocinha (salões de beleza, bares, lan-houses, imobiliárias, serviços de mototáxi e entregas etc) estão em algum tipo de ilegalidade: falta de licenças para operar (incluindo sanitárias e dos bombeiros), falta de registro formal do negócio nos órgãos municipais, estaduais e federais, não recolhimento de impostos, taxas e contribuições, empregados sem carteira assinada e sem qualquer benefício trabalhista, e por aí vai.
Ou seja, nada ali resiste a um “choque de ordem”. Exigido o cumprimento da lei, toda a atividade econômica será paralisada. Ou porque o pessoal não terá dinheiro para formalizar os negócios ou porque não terá condições práticas (lojas de tamanho insuficiente para os padrões legais, por exemplo). A cobrança, portanto, interrompe comércio e serviços e, mais importante, piora a vida das pessoas que moram ali.
Primeira conclusão: as autoridades precisarão ter muita tolerância neste momento. Claro que as atividades do tráfico, os negócios ligados aos traficantes precisam ser imediatamente fechados. Mas será preciso providenciar uma transição para todos os outros, os que estavam ali mais como vítimas da ausência do Estado do que como culpadas.
Por outro lado, se a Rocinha será integrada à vida normal da cidade, está claro que precisa viver sob o mesmo império da lei. No mínimo, por uma questão de concorrência. Se todo mundo puder entrar e sair da Rocinha sem riscos, por que a mulher vai fazer o cabelo num salão de fora se o da Rocinha será certamente mais barato porque não paga o pesado custo da formalidade?
Mas a situação vai além disso, é claro. Do ponto de vista social, político e ético, não pode existir a cidade formal e a informal, a legal e a ilegal. Sim, todos sabemos que isso acontece. Todos sabemos que a pirataria rola solta por aí, mas não podemos nos conformar com isso. E a legalidade deve melhorar e não piorar a vida das pessoas.
Tudo considerado, o Rio precisa de uma legislação para operar a transição da Rocinha e outras comunidades à normalidade.
Precisa de lei porque a coisa não pode ficar conforme a vontade do governante de plantão – já que isso seria a porta escancarada para a exploração política e a corrupção – de novo.
E fica mais uma evidente como a formalidade é complicada e cara em qualquer lugar do Brasil. Reparem: nos casos aqui comentados, a formalidade liquida o negócio. Mas quanto é o custo Brasil que nem conseguimos medir?
Não se trata, pois, de desburocratizar para a Rocinha, mas para todas as comunidades do país, para todas as pessoas que querem ganhar dinheiro honestamente. Esta seria uma outra liberação.
CUSTO TRABALHISTA
Do presidente da japonesa NTT Data, uma multinacional, Toru Yamashita, em declarações à revista “Exame”: “É mais fácil investir no Brasil (do que na China). O difícil aqui não é entrar , mas sim gerenciar os negócios devido a pecualiaridades, como a severa lei trabalhista, algo que nunca vimos em outros lugares.”
Se é difícil para uma multinacional, imaginem para os empreendedores da Rocinha.
Fonte: O Globo, 18/11/2011
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