O número é propriamente assustador, dificilmente imaginável em um país que vive sob um regime democrático. As idas e vindas desse processo, afora as tecnicalidades jurídicas, mostram o quão difícil consiste viver em um regime de liberdades, porque os que se articulam contra ele se fazem perigosamente presentes.
O Supremo Tribunal Federal deu um exemplo para a nação quando aboliu a Lei de Imprensa, que era um resquício do regime autoritário. Naquele então, chegou a se esboçar uma discussão, aliás pertinente, de se não se criaria um vácuo legal no sentido da proteção de algumas liberdades individuais. Foi, no entanto, vencedora a proposta de que o mais importante consistia numa afirmação de princípio, consoante com os fundamentos de nossa Constituição. A liberdade de imprensa, naquele então, foi elevada a princípio incontestável.
Observe-se o valor de tal afirmação de princípios, sobretudo considerando que o atual governo tentou com a criação do Conselho Federal de Jornalismo fazer valer princípios corporativos, que poderiam atentar contra essa mesma liberdade. Considere-se igualmente que o entorno latino-americano é dos mais perigosos para a liberdade de imprensa, com Chávez na Venezuela procurando suprimi-la, com Cristina Kirchner na Argentina procurando cerceála e com Rafael Correa no Equador tentando restringi-la severamente. Os algozes da democracia estão fortemente estruturados na América Latina, no interior de sua proposta socialista autoritária. Realce deve, portanto, ser dado a essa decisão anterior de nossa mais Alta Corte.
No entanto, o mesmo Supremo, confrontado com um recurso do Estadão, voltou atrás em relação aos mesmos princípios por ele assegurados. É bem verdade que tecnicalidades jurídicas podem ter influenciado essa decisão.
Contudo, há algo bem maior aqui em causa, relativo ao princípio mesmo da liberdade de imprensa versus uma questão processual. O paradoxo consiste em que a nossa mais Alta Corte, confrontada a uma questão de princí pio, função primordial sua, optou por uma resposta processual, que deixa a descoberto o fundamento mesmo de nossa Constituição. A hora era emblemática, a de afirmação de uma questão de princípio, diante de já longos 143 dias de censura. Para um regime democrático, é uma eternidade.
O assunto torna-se ainda da maior gravidade, pois a censura em questão visa a proteger o filho do presidente do Senado, ex-presidente da República, envolvido em vários atos considerados como ilícitos pela Polícia Federal. Ele se encontra em investigação na operação Boi Barrica, com gravações telefônicas que parecem atestar uma série de condutas não condizente com o ordenamento jurídico de nosso país. Até diria que o filho de um ex-presidente deveria ser um exemplo para o país, e não o contrário. Acontece que ele se encontra na iniciativa da ação de censura, que terminou acolhida por um juiz amigo da família, flagrado em uma foto festiva de confraternização.
Para o cidadão comum, estamos diante de um “privilégio”.
O que é um “privilégio”? Segundo o Dicionário Houaiss, privilégio significa: “direito, vantagem, prerrogativa, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria; apanágio, regalia.” A sua etimologia vem do “lat.
privilegìum,ìi ‘lei excepcional concernente a um particular ou a poucas pessoas; privilégio, favor, graça’; ver privilegi f.hist. sXIII privilegio, sXIV priuylegyos, sXV preuilegio”. O seu elemento de composição é: antepositivo, do lat.
privilegìum,ìi ‘lei excepcional em favor de um particular; privilégio’. A censura é, neste sentido, um privilégio.
Privilegiados são, portanto, aqueles que gozam de um direito exclusivo, usufruindo legalmente de vantagens em detrimento dos outros. Privilégio é uma lei, cuja validade é apenas particular, dirigida a um grupo social, a um estamento, a um conjunto determinado de indivíduos por razões corporativas, sociais, sexuais, raciais, profissionais, econômicas ou outras. Trata-se de uma “lei excepcional”, direcionada exclusivamente para um grupo de pessoas. No caso, os interesses de um grupo regional que usufrui, oligarquicamente, de suas posições políticas.
A situação é tanto mais grave que ela contrasta com outros escândalos que têm permeado a história recente.
Apesar de nossos graves e constantes problemas de “imoralidade pública”, com corrupção e desvio de recursos públicos povoando nossas páginas políticas que mais parecem páginas policiais, o país tem crescido com isso. E tem crescido graças à publicização dada a esses atos ilícitos, mostrando e flagrando políticos cujo currículo mais se assemelha a uma folha corrida. Há mesmo uma Iniciativa Popular, já apresentada à Câmara dos Deputados, impedindo que políticos condenados em primeira instância possam se candidatar.
Uma tão louvável iniciativa não teria sequer ocorrido se a imprensa e os meios de comunicação em geral não tivessem exercido a sua função. E essa sua função está assentada no exercício da liberdade.
Os últimos anos foram os dos mensalões: do PT, do PSDB e do DEM. Foram exaustivamente expostos pela imprensa, dando aos cidadãos a possibilidade de julgar.
Não houve nenhum cerceamento à liberdade. Os meios de comunicação e a imprensa em particular agiram sem nenhuma trava. Os envolvidos podem ter sido prejudicados, alguns alegando inocência, outros dificilmente podendo sustentá-la. Estão nos seus respectivos direitos de serem ressarcidos em sua honra, se foram injustamente condenados pela opinião pública.
No entanto, não houve censura e o país fez e continua fazendo o aprendizado de seus erros. Erro maior consiste, porém, na manutenção da censura, pois, esta sim, é irreversível e, a médio prazo, extremamente daninha para as instituições democráticas.
(O Globo, 21/12/2009)
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