Precisar, não precisava, mas o caso dos catadores de papelão em São Paulo Rejaniel Santos e Sandra Domingues, que encontraram R$ 20 mil em sacos plásticos atrás de uma árvore próxima ao viaduto onde dormem e procuraram a polícia para devolver o dinheiro, faz um contraponto poderoso ao senador Demóstenes Torres, que deve ser cassado hoje pelo Senado.
Não era preciso uma contraposição tão escandalosa, que coloca dois pobres trabalhadores na escala mais baixa da sociedade a dar lições de moral a um senador da República, já que as gravações que incriminaram Demóstenes falam por si.
Mas, no Brasil, um gesto como esse ainda é tratado como fato anormal, dá primeira página de jornal, e periga os catadores honestos serem criticados pela “burrice” que fizeram. Parece o caso de uma amiga que, exilada nos anos 70 do século passado na Suécia, se espantou com a foto na primeira página de um jornal de um rato que aparecera na cidade. Fatos inusitados na pequena cidade sueca daquele tempo e hoje no Brasil.
Imediatamente, ambos entregaram o dinheiro à polícia. “A minha mãe me ensinou que não devo roubar”, explicou candidamente Rejaniel Santos. “E que devia contar à polícia se visse alguém roubando.”
Já o quase ex-senador Demóstenes Torres encontrou uma maneira mais adequada a estes tempos de moral complacente para se explicar a seus colegas: disse da tribuna do Senado que mentir não é quebra de decoro.
Como um experiente promotor, Demóstenes Torres agarrou-se a duas estratégias na sua defesa. Do ponto de vista jurídico, alega que as gravações em que foi apanhado em flagrante não tinham autorização da Justiça, pois a Polícia Federal investigava o bicheiro Carlinhos Cachoeira e apanhou o senador com a boca na botija de maneira indireta.
É possível que o advogado de Demóstenes, Antonio Carlos de Almeida Castro, o experiente Kakay, consiga anular no Supremo a legalidade das gravações, mas será impossível apagar da memória dos senadores e, sobretudo, da opinião pública as conversas que ouviram.
No plano político, tentou em vão o apoio de seus pares para não ser julgado pela Comissão de Ética e foi condenado por unanimidade.
Um dos pontos levantados contra ele foi justamente o fato de ter mentido a seus pares, negando um relacionamento com o bicheiro que, ao final, ficou comprovado.
Nos últimos dias, Demóstenes Torres subiu à tribuna do Senado sete vezes seguidas, diante de um plenário praticamente vazio, para tentar a última defesa.
Jogou sempre no aspecto emocional, tentando transformar-se em uma vítima do sistema político. Essa estratégia de vitimização, ele já tentara logo no início do processo, quando disse, a certa altura, “Eu não sou mais o Demóstenes”.
Na ocasião, ouvi o psicanalista Joel Birman, que viu na frase a revelação de uma personalidade psicologicamente quebrada, como se dissesse “Eu não sei mais quem é o Demóstenes”.
Na sua defesa da tribuna, Demóstenes Torres continua confirmando que o personagem que ele criou para si próprio não era uma mentira, ele incorporou esse personagem e acreditava nele.
Podia acusar com veemência seus colegas senadores apanhados em desvios, como o senador Renan Calheiros, enquanto mantinha o relacionamento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira porque, como todo psicopata, não misturava as personalidades, analisou Birman. Ele vestiu uma máscara, e ela acabou se colando em seu corpo.
Outro que parece ter duas personalidades é o prefeito petista de Palmas, no Tocantins, Raul Filho, flagrado em uma conversa comprometedora com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, que tem o hábito de gravar seus encontros.
O prefeito, sentado naquele sofazinho do gabinete do bicheiro, foi abrindo propostas de parceria em seu futuro governo e não podia imaginar que, dentro do ar-condicionado, havia uma câmera filmadora.
Foi por isso que ele, num ato falho típico, disse que teve a “infelicidade” de ser gravado, em mais um comentário próprio dos tempos aéticos que vivemos na política.
O mais grave dessa sucessão de envolvimentos de políticos com o bicheiro é a constatação de que o crime organizado já estava tomando conta da política nacional.
Depois de ouvir os delegados da Polícia Federal que trabalharam na investigação, o senador Pedro Taques, do PDT de Mato Grosso, disse que o bicheiro Carlinhos Cachoeira já estava no terceiro estágio do crime organizado, buscando negócios legais.
Oriundo do Ministério Público, assim como Demóstenes, o senador Taques tem experiência de acompanhar esse tipo de ação criminosa e não estava fazendo um comentário leviano.
As investigações revelaram com uma profusão de detalhes as ligações de Cachoeira com praticamente todos os níveis de poder da República, sendo que tinha no bolso do colete pelo menos um senador – Demóstenes Torres, ex-DEM de Goiás, que um dos delegados classificou como o braço político da organização – e dois deputados federais – Carlos Leréia, do PSDB, e Sandes Júnior, do PP, ambos de Goiás.
Além do Congresso, o bicheiro tinha influência importante sobre pelo menos dois governadores, o tucano Marconi Perillo (Goiás) e o petista Agnelo Queiroz (Brasília).
A atuação do mafioso não se limitava a Goiás, seu estado natal, ou ao Centro-Oeste, como quis fazer crer num primeiro momento o relator petista, tentando circunscrever as investigações ao interesse de setores de seu partido.
Seu império se espalhava por todo o país, e há ainda a se provar sua participação na empreiteira Delta, de quem parece ser um sócio oculto.
Mais do que o depoimento do dono da Delta, Fernando Cavendish, que acabou sendo convocado pela CPI, as investigações sobre as contas da empreiteira é que darão a real dimensão dos crimes praticados.
A cassação do senador Demóstenes é apenas uma etapa dessa investigação.
Isso se o Senado ainda se der ao respeito.
Fonte: O Globo
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