*Lucas Machado
O princípio da isonomia, consagrado no artigo 5º da Constituição Federal, estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza. No âmbito judicial, essa igualdade se traduz na paridade de armas, ou seja, no direito de que as partes em litígio tenham as mesmas oportunidades processuais para defender seus interesses. Porém, quando o Estado é uma das partes, esse princípio é sistematicamente desvirtuado.
Pelo contrário, litigar contra o Estado é enfrentar uma batalha desigual desde o início. O Estado, por si só, já é um “Golias” em terra de “Davis”. Afinal, o Estado conta com recursos financeiros “abundantes”, presunção de legalidade dos atos administrativos, poderes coercitivos inigualáveis entre tantas outras questões. Além de todo seu poder, os entes públicos (Estado, autarquias, municípios etc.) possuem uma série de série de privilégios — apelidadas de prerrogativas — que desequilibram a balança processual, colocando o particular em uma posição ainda maior de desvantagem quando se fala em litígio contra a máquina pública.
O Leviatã
Thomas Hobbes, em sua obra Leviatã, descreveu o Estado como uma entidade colossal, um poder soberano destinado a garantir a ordem e a proteção social. Para Hobbes, o Leviatã — como ele metaforicamente chama o Estado — detém autoridade absoluta e poder superior aos dos indivíduos, sendo essencial para evitar o caos. No campo jurídico, esse poder absoluto se traduz em uma desigualdade “natural”, pois o Estado, na sua função de preservar a ordem e a legalidade, detém uma força coercitiva e estrutura que nenhum cidadão individualmente consegue igualar.
Essa força institucional, por si só, já cria uma desigualdade processual. Afinal, o Estado dispõe de procuradores públicos altamente especializados, recursos financeiros vastos, e uma infraestrutura técnica que permite uma defesa altamente eficiente. O cidadão comum, por outro lado, precisa recorrer a advogados, pareceristas e peritos com seus próprios recursos, o que muitas vezes limita sua capacidade de defesa.
Toda essa infraestrutura, mantida pelos pagadores de impostos, coloca o Estado em uma posição de clara vantagem frente ao particular, que já inicia a relação processual em desvantagem técnica e econômica para encarar o litígio.
Os privilégios estatais e a quebra da isonomia processual
A força Estatal, porém, não se limita na sua própria natureza. A legislação processual oferece ao Estado certas prerrogativas que rompem de vez a paridade de armas, perpetuando e aprofundando o desequilíbrio de forças entre os particulares e o Estado.
Um exemplo claro disso é o prazo em dobro para recorrer e contestar, previsto no artigo 183 do Código de Processo Civil. Por exemplo, caso um indivíduo mova uma ação indenizatória contra algum ente federativo, a Procuradoria desse ente federativo terá 30 dias úteis para apresentar sua defesa. Por outro lado, caso a mesma ação fosse movida pelo ente federativo contra o particular, esse particular teria apenas 15 dias úteis.
Embora a justificativa para essa diferença seja, em tese, o elevado número de processos envolvendo o poder público, na prática, ela o confere mais tempo para o Estado estruturar defesas e elaborar recursos. O indivíduo, por outro lado, é limitado a agir em prazos muito mais exíguos.
Um outro exemplo é a aplicação dos efeitos materiais da revelia. Considerando o exemplo anterior, caso a Procuradoria daquele ente, por algum motivo, perdesse o prazo para apresentar a sua defesa, os fatos apresentados pelo autor não poderiam ser automaticamente presumidos verdadeiros. Por outro lado, caso o particular deixe de apresentar sua defesa, será considerado revel e os fatos narrados a inicial serão presumidos como verdadeiros1.
Essa desigualdade processual persiste até mesmo quando o particular consegue superar as barreiras iniciais e obtém uma sentença favorável. Após vencer na primeira instância, o cidadão ainda enfrenta o obstáculo da remessa necessária (art. 496 do CPC), um procedimento que impõe a reanálise obrigatória da decisão em segunda instância sempre que a condenação for contra o Estado2.
Ou seja, a sentença só poderá transitar em julgado após a reanálise e confirmação da sentença pelo tribunal, ainda que tenha havido confissão, o que inevitavelmente prolonga o processo e retarda a satisfação do direito.
Essa disparidade se torna ainda mais problemática quando se considera a isenção de custas processuais de que o Estado desfruta. Enquanto os cidadãos precisam arcar com todas as despesas processuais, como taxas, custas, preparos, perícias e honorários advocatícios, o Estado não.
A consequência disso é que se cria um incentivo econômico ao poder público de litigar sem a mesma preocupação financeira que afeta o indivíduo. Na prática, o Estado pode recorrer indefinidamente, mesmo em casos nos quais sua derrota é praticamente certa, sem enfrentar o impacto financeiro que desestimula o uso abusivo de recursos por parte de litigantes comuns.
Os privilégios processuais concedidos ao Estado somados à sua já robusta estrutura jurídica e administrativa tornam o litígio contra o poder público uma disputa injusta. A paridade de armas, que deveria garantir igualdade entre as partes litigantes, é sistematicamente violada. Com isso, compromete-se a credibilidade do sistema judiciário e a própria noção de justiça.
O prazo em dobro para recorrer e contestar, a isenção de custas processuais, a ausência de efeitos da revelia e a remessa necessária são apenas algumas das benesses que favorecem o Estado em detrimento dos indivíduos e particulares. Além dessas vantagens, ainda podemos citar a impossibilidade de penhora de bens públicos, citações e intimações pessoais, o regime de precatórios para o adimplemento das condenações etc.
No final, torna-se evidente que o processo não foi pensado na proteção do indivíduo, mas sim na proteção do Estado. Nesse cenário, não existe isonomia quando o cidadão é o lado mais vulnerável da balança. Como dizia Nietzsche, “O Estado é o mais frio dos monstros frios”.
Lucas Machado é advogado, graduado em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul. Membro da Comissão da Jovem Advocacia e da Advocacia Empreendedora e Inovação da OAB Jabaquara/SP e integrante como Qualify no IFL Jovem – SP. Fundador, Editor e Escritor do Blog Jus Talks, destinado ao Direito e atualidades correlatas.