Incrível, fantástico ou extraordinário? Apenas coisas da vida: no ano passado, 131 brasileiros morreram fulminados por raios em diversas regiões do país. É mais gente do que as vitimas de desastres aéreos no período, que têm muito mais chances de acontecer, por dependerem de fatores humanos e mecânicos, além dos meteorológicos. Os raios, não: desabam dos céus aleatoriamente para fulminar um ser humano inocente, de qualquer sexo, idade ou classe social, que estava no lugar errado, na hora errada.
Pelo número de mortos no Brasil, imagina-se quanta gente do mundo inteiro voltou ao pó por uma descarga de milhões de volts disparada dos céus. A vida é mesmo assim, está sempre por um fio, absolutamente fora de qualquer controle humano. E pode acabar num raio, ou num infarto, a qualquer momento. Até para o mais poderoso dos mortais.
Desde Zeus e Iansã, os raios são a simbologia ancestral do poder da divindade e representam a força do acaso, da fatalidade e do destino. Eles fulminam a onipotência humana e revelam a nossa fragilidade e desimportância. Além dos acidentes, das tragédias, das doenças terminais e aleatórias, das balas perdidas e das dores crônicas que, como raios, fulminam a existência de alguém, não existem dinheiro ou poder no mundo que resistam a um simples cálculo renal, um apêndice supurado ou a um dente com o nervo exposto.
É duro admitir, mas não há justiça na natureza, nem no cosmos, nem nos deuses. É melhor aceitar que o conceito de justiça é uma invenção humana, com suas imprecisões e precariedades, para possibilitar uma vida civilizada em comunidade.
Dizem que os raios não caem duas vezes no mesmo lugar, mas há controvérsias: pelo menos metaforicamente, a história vem desmentindo esta crença. Senão Sarney não teria sido tantas vezes presidente do Senado. Brizola não teria governado o Rio de Janeiro duas vezes. Rosinha não teria sucedido a Garotinho.
Poucos ainda usam a velha expressão de origem portuguesa “vá para o raio que o parta”. Mas, se for usar, diante das estatísticas brasileiras, cuidado com os seus desejos, porque eles podem se realizar.
Fonte: O Globo, 26/11/2010
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