Desde o ano passado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se enfiou numa discussão sobre o combate a “fake news” cujo caráter varia entre o bizantino e o acaciano. Quem procura seguir debates ou pronunciamentos a respeito fica sem saber se reage com choro ou gargalhada.
Para além de ideias abstrusas, como proibir a circulação de informações, nenhuma medida de caráter concreto foi tomada. O resultado é o que está aí: grupos de WhatsApp propagando mentiras sem cabimento na velocidade dos bits. No meio digital, já está claro há anos que a mentira tem pernas mais longas que a verdade.
Não há dúvida de que propaganda enganosa e notícias falsas podem interferir na decisão do eleitor. Para mostrar isso, nem é preciso recorrer às redes sociais ou aos 126 milhões de americanos impactados por conteúdo mentiroso no Facebook na campanha eleitoral que levou à vitória de Donald Trump em 2016.
Basta lembrar os anúncios do PT no horário eleitoral em 2014, argumentando que a então candidata Marina Silva tiraria comida do prato do povo, ou os infindáveis boatos de que este ao aquele adversário acabaria com o Bolsa Família. Nesta eleição, o próprio PT tem sido a principal vítima dessas manobras, a ponto de o candidato Fernando Haddad ter vindo a público propôr um pacto contra a circulação de “fake news” no WhatsApp.
Leia mais de Helio Gurovitz:
A matemática do voto nulo
Por que o ódio toma conta da democracia
As más influências nas redes sociais
Ainda que Jair Bolsonaro tenha adaptado ao Brasil táticas de Trump, seria um erro atribuir sua provável eleição apenas à máquina de propaganda digital. Estão em ação vários outros fatores – do antipetismo à Operação Lava Jato. Tanto que a vantagem de Bolsonaro sobre Haddad está perto de 20 milhões de votos, enquanto Trump foi eleito por uma diferença de apenas 77 mil, obtidos em três estados estratégicos onde concentrou esforços de sua campanha digital.
Mas também é um erro desprezar a relevância da propaganda mentirosa, venha ela de qualquer lado. A mentira está na essência da política. Se mantemos a confiança no regime democrático, é por acreditar, de alguma forma, na autonomia e inteligência do eleitor para separar as mentiras da verdade na hora de fazer suas escolhas. Para que isso funcione, contudo, ele precisa ter acesso a informações produzidas de modo isento e profissional.
As redes sociais trouxeram novas armas, com mais poder e mais alcance, a grupos políticos interessados em manipular a opinião pública. Por mais que a imprensa profissional e as agências de checagem se esforcem, a sensação é de enxugar gelo. Só o projeto #FatoOuFake, capitaneado pelo G1 no Grupo Globo, já fez quase 800 checagens durante a campanha. O Comprova, que reúne os principais veículos da imprensa profissional, têm lançado desmentidos dituturnamente.
Só que a campanha nas redes sociais se voltou contra a própria imprensa, que atravessa uma crise de credibilidade sem precedentes. A própria checagem é mais lenta. Sempre tem alcance menor que a propagação das mentiras e dificilmente contém o estrago já feito. Mesmo nas eleições mexicanas deste ano, onde um grupo de checadores funcionava em tempo real para desmentir boatos, foi impossível derrotar a avalanche de “fake news”.
Tal assimetria impõe um desafio à sociedade. Exige medidas das autoridades para que o fluxo de informação recobre a sanidade. Sem a garantia de um eleitorado informado, não dá para confiar na democracia. Desde o século XIX, tem sido essa a missão da imprensa profissional (leia mais aqui).
O que é possível fazer? Obviamente o TSE, em virtude da ignorância digital crônica de suas lideranças, nada fez. O Congresso driblou o assunto. Preocupada com o exemplo americano, a Lei Eleitoral passou a permitir “impulsionamento de conteúdo”, por meio de anúncios pagos e identificados em redes sociais como Twitter e Facebook. Mas esqueceu grupo privados em aplicativos como WhatsApp ou Telegram.
Nos momentos mais acalorados, chegou-se a aventar medidas drásticas, como a proibição de grupos de mensagens durante o período eleitoral – medida inconstitucional, por equivaler à censura (o Irã, regime autoritário, proibiu o Twitter, depois dos protestos de rua em 2009).
Um grupo de pesquisadores da UFMG, da USP e da Agência Lupa tem uma sugestão menos drástica. Em artigo no New York Times, recomenda que o WhatsApp restrinja o tamanho dos grupos de discussão e a possibilidade de encaminhar mensagens, , como já fez na Índia (a cinco vezes, em vez das atuais vinte). Com base na análise de 847 mil mensagens que circularam em 347 grupos de discussão do WhatsApp, eles concluíram que apenas 4 das 50 imagens que mais circularam traduziam notícias verdadeiras.
A regulação da circulação da informação em grupos de WhatsApp precisa evitar a censura e soluções autoritárias, como a iraniana. Mas algo precisa ser feito em nome da saúde do sistema democrático. Mesmo tardia e insuficiente, a sugestão dos pesquisadores é um bom começo para encurtar as longas pernas da mentira digital.
Fonte: “G1”, 18/10/2018
Assista ao debate de Helio Gurovitz, Alberto Bombig e Cristina Tardáguila sobre fake news em ano eleitoral