Declaração de Barack Obama na segunda-feira: “Podemos todos concordar que é um dia bom para os Estados Unidos. Nosso país manteve o compromisso de buscar a justiça, que foi feita. O mundo é um lugar melhor e mais seguro por causa da morte de Osama bin Laden”.
Comecemos pelo começo. Quanto a ter sido um dia bom para os Estados Unidos, podemos concordar com Obama. Nada menos que 69% dos americanos apoiam o modo como ele vem conduzindo a cruzada antiterror. A morte do líder da Al-Qaeda elevou em nove pontos a sua taxa de aprovação. O povo americano aplaudiu. “A notícia de que Osama bin Laden foi localizado e morto por forcas americanas nos trouxe, a nós e a todos os americanos, uma grande sensação de alívio”, resumiu editorial do jornal The New York Times anteontem.
Duas razões explicam o alívio. A primeira é de ordem prática: o homem que assumiu a autoria de alguns dos mais horrendos atentados terroristas da História e lançava ameaças constantes a todos os americanos simplesmente saiu de cena. Se ele está morto, o risco que ele representava deixou de existir. Elementar. A segunda razão tem que ver com honra: o criminoso que perpetrou o mal contra tanta gente, de modo tão selvagem, sofreu finalmente a pena que os ofendidos desejavam que ele sofresse. Os ofendidos sentem-se vingados. E festejam. Mas, a partir daqui, já não se pode concordar silenciosamente com Obama.
Será que podemos chamar isso de justiça? Por mais compreensível que seja a caçada americana, a execução sumária de Bin Laden pode ser entendida como a realização da justiça?
É verdade que a justiça traz uma reparação que aplaca a dor do ultrajado. É verdade, portanto, que uma das faces da justiça atende ao anseio de vingança. Mas não é correto dizer que a justiça se reduza a uma forma elaborada de vingança. Ela é bem mais do que isso. Ao longo de milênios, a civilização foi descobrindo que, para se realizar, a justiça não se pode confundir com a ira vingadora; ela se põe acima e a salvo das paixões e dos ressentimentos dos ofendidos, é cega às paixões das partes e, só por isso, consegue dimensionar o dano, estipular a pena, serenar o espírito dos que sofreram com o crime e, principalmente, pacificar a sociedade. Vem daí a noção – civilizada – de que ninguém faz justiça com as próprias mãos. Faz-se a guerra – mas não se faz justiça.
A morte de Osama bin Laden, ainda que traga alívio a milhões de pessoas, não pacificará nada. Todos sabem disso, inclusive as autoridades do governo americano. O mundo está mais tenso. Essa morte, mais que uma solução, expõe um grande problema para o qual parece não haver uma saída imediata. Bin Laden eliminado e desaparecido não prenuncia a superação de um conflito, mas nos escancara um limite da convivência pacífica entre os povos. A comunidade internacional, na ordem precária em que se equilibra, talvez não tivesse como julgá-lo. Tampouco os Estados Unidos. Onde ele ficaria preso? Em que cidade? Como garantir a segurança da população próxima? São essas perguntas que escancaram o nosso limite. A nossa era, que começou com o julgamento formal e justo dos piores criminosos do nazismo, chega, assim, a esta beira de abismo: não tem como julgar o líder de uma organização terrorista. Então, Obama diz que matar Osama foi uma forma de justiça, pois, deixa subentendido, não haveria outra.
Talvez seja isso mesmo. Mas isso não é “melhor”. A supressão física, sumária, de um ser humano, por pior que ele seja, seguida, aliás, do desaparecimento de seu cadáver, não é solução “melhor”. Um mundo em que a justiça se faz pelas armas de um destacamento militar que invade um país estrangeiro, toma de assalto uma residência, mata seu ocupante, transporta o corpo para alto-mar, onde some com ele, não é um mundo “melhor”. Um mundo em que a presidência dos Estados Unidos age e fala como o tribunal do mundo não é melhor. Além de ser mais sombrio, mais incerto e um tanto tenebroso.
As versões – as versões oficiais, todas elas – sobre o que se passou na mansão paquistanesa se sucedem e caem em contradições sobre contradições. Primeiro, o guia da Al-Qaeda teria resistido a bala. Depois, estava desarmado. Nem mesmo os autores do assalto conseguem explicar o que houve. A ONU solicita imagens para esclarecer detalhes da ação. Obama resiste a mostrá-las. A legalidade do ato – seria um “assassinato seletivo”? – é seguidamente contestada em esferas distintas. O quadro ganha novas conturbações.
O pior é que, no bojo da notícia espetacular, a linha mais dura e mais truculenta que mora na América se vai afirmando mais e mais. Barack Obama não é Bush, mas, por esses caminhos tortos, vai prolongando Bush. As torturas praticadas em prisões como a de Guantánamo – um “desastre legal e moral criado por George W. Bush”, no dizer de editorial do New York Times de 26 de abril, desastre que “agora é um problema de Mr. Obama” – saem malignamente reabilitadas do episódio. Segundo Leon Panetta, diretor da agência de inteligência americana, informações obtidas mediante tortura por afogamento nas prisões secretas da CIA ajudaram na operação. Desse modo, sai fortalecida a narrativa que enxerga utilidade nos interrogatórios degradantes e bárbaros. Isso, por acaso, é “melhor”?
A justificativa final que resta ao governo americano é a de que ele se encontra em guerra, uma guerra atípica, mas uma guerra. A guerra autoriza-o a impor sua justiça – e nenhum organismo supranacional será capaz de enquadrá-lo. É verdade que um mundo assim, que mistura traços de imperialismo, de civilização e de cangaço, é menos aterrorizante que um mundo ao sabor da Al-Qaeda. Mas, definitivamente, não é um “lugar melhor”. Nesse horizonte plúmbeo, mesmo sem que exista um cadáver, vai ganhar mais corpo o culto antiamericano do terrorista promovido a mártir.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 05/05/2011
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