Os efeitos multiplicativos da pesquisa agrícola aplicada deveriam ter mais destaque nos discursos presidenciais.
Na abertura da cúpula alimentar da ONU, reunida em Roma nesta semana, o presidente Lula voltou a seu tema preferido desde presidente recém-empossado: a fome. Só que, desta vez, abordando o problema em nível mundial. Numa denúncia forte da insensibilidade de sociedades e governos de países avançados ao drama permanente da falta de comida no prato dos pobres do mundo, Lula sublinhou a tragédia da mortalidade infantil causada pela desnutrição aguda. E aproveitou para mostrar a matemática do desperdício financeiro dos países ricos, que gastaram, nesta última crise, “centenas e centenas de bilhões de dólares para salvar os bancos falidos” quando “com menos da metade desses recursos teria sido possível erradicar a fome em todo o mundo”.
Lula repete, com apelo de líder admirado no mundo inteiro, um discurso comum nos idos de 1960 e 70, de erradicação da fome por redistribuição de um pedaço da renda mundial. O argumento, desgastado pela repetição sem nenhum eco, vem agora embalado por uma comparação nova, o preço dantesco do resgate do sistema bancário ameaçado de insolvência. Evidentemente, Lula está usando dimensões financeiras distintas para mostrar que a fome dos outros ainda é preocupação pouco importante na cabeça de quem poderia fazer algo a respeito, com parte dos bilhões “desperdiçados” no salvamento de bancos.
Acontece que a fome é permanente, enquanto a crise financeira é de momento. São dimensões diferentes, uma demandando programa duradouro e progressivo, e a outra, uma ação rápida, incisiva, mas tão curta e econômica quanto possível.
Infelizmente, o presidente está certo quando denuncia que nem existe programa sério e abrangente contra a fome em nível mundial nem que teria havido parcimônia no enorme programa tapa-buracos do resgate bancário ora em curso.
Quando feitas as contas, que estão longe de estar fechadas, o salvamento do sistema financeiro ficará perto de 20% do PIB mundial, algo na faixa de US$ 10 trilhões. Essa soma astronômica se acrescentará à dívida dos governos, pressionando juros para cima e reduzindo a capacidade financeira dos países ricos em ajudar os pobres e de realizar muitos investimentos na segurança climática.
É, portanto, uma situação bem pior do que o mero “desperdício” apontado por Lula no seu discurso. Os efeitos retardados da congestão financeira nos países ricos ainda trarão graves consequências defasadas à segurança alimentar mundial. Mas o Brasil, que pode exportar “tecnologia de Bolsa Família” e que pode até exportar lideranças de nível internacional, como o próprio presidente, deveria estimular uma outra revolução, que é a da produtividade agrícola em regiões de condição climática semelhantes às do país. O emprego de técnicas economizadoras de água e o teste de novas variedades de sementes mais resistentes e produtivas seriam respostas mais inteligentes aos países que hoje sofrem com a baixa produtividade agrícola em vastas regiões da África e mesmo em países vizinhos de nosso continente. Os efeitos multiplicativos da pesquisa agrícola aplicada, como poderoso fator de redução da pobreza no campo, bem como elemento crucial da fartura alimentar a longo prazo, deveriam ganhar mais destaque nos discursos presidenciais. Esse é o grande serviço que o nosso Brasil ainda pode prestar aos pobres do mundo: não só distribuir latas de sardinha mas emprestar varas de pescar e as técnicas do seu emprego.
Fonte: Jornal Folha de S. Paulo, publicado em 18 de Novembro de 2009.
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