Autor e personagem de um vídeo que tomou conta da internet, em que é chamado de “otário” e “sacana” pelo governador Sérgio Cabral, além de ouvir do presidente Lula que tênis é “esporte da burguesia”, o estudante Leandro dos Santos, morador de um barraco na Favela Nelson Mandela, no Rio de Janeiro, não tinha ideia da repercussão da gravação. O episódio foi reproduzido por Italo Nogueira, repórter do jornal Folha de S.Paulo e pode ser conferido pelo amigo leitor em http://www.youtube.com/watch?v=KOKS_apCwzA. O jovem, xingado por Cabral e ironizado por Lula, desnudou as duas caras dos homens públicos: o rosto amável e as palavras medidas diante das câmeras e o desprezo debochado na vida real.
Segundo Nogueira, o estudante abordou o governador e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro do ano passado, após a inauguração de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em Manguinhos. Primeiro, o rapaz reclama da ausência de uma quadra de tênis no local e Lula diz que isso é “esporte da burguesia”. O presidente, então, pergunta por que ele “não treina natação”. Ao ouvir que a piscina fica fechada, Lula dirige-se a Cabral: “O dia que a imprensa vier aí e vir isso fechado, o prejuízo político é infinitamente maior do que colocar dois guardas aí.” O comentário de Lula é revelador. O que interessa não é o bem-estar dos pobres, mas o eventual arranhão na sua imagem.
Em seguida, Leandro reclama do barulho do “Caveirão”, o blindado da Polícia Militar, em sua rua. Cabral interrompe-o e pergunta: “Lá não tem tráfico, não?” Quando o jovem diz que não, o governador rebate: “Deixa de ser otário, está fazendo discurso de otário.”
Otário, sacana e burguês – três carimbadas no rosto de um jovem favelado que teve a coragem de exercer a cidadania e de questionar governantes carregados de arrogância e armados de ironia cruel, mas que diante dos holofotes da mídia se apresentam como paladinos da luta contra qualquer tipo de discriminação. Uma imagem grita mais que mil palavras. O vídeo está bombando na internet e causa irado constrangimento.
Nós, jornalistas, devemos refletir a respeito desse episódio. Ele revelou o que nossas pautas não costumam contar. Mostrou a face verdadeira, o rosto sem maquiagens, a alma desprovida do botox do marketing. E é exatamente isso que devemos fazer.
Campanhas milionárias, promessas surrealistas e imagens produzidas fazem parte da estratégia de alguns candidatos. O marketing, ferramenta importante para a transmissão da verdade, pode ser transformado em instrumento de mistificação. Estamos assistindo à morte da política e ao advento da era da inconsistência. Os programas eleitorais vendem uma bela embalagem, mas, de fato, são paupérrimos na discussão das ideias. Nós, jornalistas, somos (ou deveríamos ser) o contraponto a essa tendência. Cabe-nos a missão de rasgar a embalagem e desnudar os candidatos. Só nós, estou certo, podemos minorar os efeitos perniciosos de um espetáculo audiovisual que, certamente, não contribui para o fortalecimento de uma democracia verdadeira e amadurecida.
Por isso, uma cobertura de qualidade é, antes de mais nada, uma questão de foco. É preciso declarar guerra ao jornalismo declaratório e assumir, efetivamente, a agenda do cidadão. É preciso cobrir a fundo as questões que influenciam o dia a dia das pessoas. É importante fixar a atenção não nos marqueteiros e em suas estratégias de imagem, mas na consistência dos programas de governo.
O nosso papel é ouvir as pessoas, conhecer suas queixas, identificar suas carências e cobrar soluções dos candidatos. Não se pode permitir que as assessorias de comunicação dos políticos definam o que deve ou não ser coberto. O centro do debate tem de ser o cidadão, as políticas públicas, não mais o político. O jornalismo de registro, pobre e simplificador, repercute o Brasil oficial, mas oculta a verdadeira dimensão do País real.
Dilma Rousseff, por exemplo, diz que vai fazer o trem-bala. Baita declaração. Mas é viável? Como vai contornar a muralha da Serra das Araras? E as infinitas desapropriações? Ninguém fala disso. O que fica é o efeito: “Vou fazer o trem-bala.” Ou: “Sou contra o aborto”, mas considero o aborto “um problema de saúde pública.” Afinal, é a favor ou é contra? Quer ampliar os casos previstos na legislação ou deixar como está? “Sou contra a censura.” Beleza. Então, como explicar sua assinatura no 3.º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)? Como explicar as sucessivas maquiagens nos seus planos de governo? “Sou contra qualquer ditadura.” Ótimo. Mas como explicar as declarações de apoio de Hugo Chávez à “amiga Dilma”? E José Serra, é a favor ou contra a independência do Banco Central?
Nosso papel, embora com civilidade e respeito, não é registrar, mas questionar. Willian Bonner, âncora do Jornal Nacional, fez a sua parte com notável profissionalismo. O PT errou quando insultava Sarney, Collor e Renan Calheiros ou errou depois ao se aliar a eles? “Antes o PT não tinha experiência, amadureceu no governo”, respondeu Dilma. A candidata, sem a blindagem imediata do marketing, mostrou sua concepção de política: um jogo pragmático e sem nenhum tipo de baliza ética. Para ela, ser “maduro” é juntar-se ao que há de pior. Cobrada sobre o resultado fraco no crescimento econômico se comparado com outros emergentes, culpou a “herança maldita” do governo Fernando Henrique. Ainda não passou pela cabeça da candidata culpar Pedro Álvares Cabral pelo gargalo na infraestrutura. Mas chegaremos lá. O telespectador, sem contrabando opinativo, tira suas conclusões.
O jornalismo de qualidade, firme e independente, é rastreador da verdade. Não é nosso papel embalar candidatos, mas mostrar suas contradições. É preciso incomodar. Jornalismo cor-de-rosa não faz bem à democracia.
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 23/08/10
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