Lula um dia pediu desculpas ao povo brasileiro pelo mensalão, dizendo ter sido traído por aqueles que participaram do esquema denunciado pelo Ministério Público e condenado pelo STF. Depois, cedendo ao seu usual costume de tratar a política como algo estritamente pragmático – e fazendo igual a tantos políticos tradicionais que sempre criticou -, adotou um procedimento próprio da realpolitik e, em total detrimento das considerações de princípios que deram origem ao PT, desmentiu a si próprio sem dar explicação de porque mudou de opinião.
O ex-presidente voltou à carga agora, e falando a uma televisão portuguesa disse que a sentença do mensalão foi 80% política e apenas 20% jurídica. Lula foi ainda mais longe e afirmou que o processo do mensalão foi “um massacre que visava destruir o PT, mas não conseguiram”. As declarações, feitas no momento em que os partidos políticos começam a enfrentar o duro embate eleitoral de 2014, reabrem a controvérsia sobre a natureza do processo do mensalão, e Lula – um pouco tardiamente em relação à promessa que tinha feito de falar do assunto após sair do governo – se junta agora à grita usual dos petistas que consideram ter sido o processo um julgamento de exceção.
A primeira questão que decorre da declaração de Lula é óbvia: qual é a natureza da sua escolha de ministros indicados para o Supremo, a exemplo do presidente Joaquim Barbosa? Ao atribuir caráter político ao longo processo jurídico que examinou um oceano de provas e detalhes técnicos, a partir da denúncia apresentada pelo Procurador Geral da República – também indicado por ele -, o que Lula está dizendo sobre as suas próprias escolhas de membros da Suprema Corte? Estaria revelando que, ao invés de indicar magistrados ilibados, competentes e autônomos, errou e escolheu juízes que tinham compromissos político-partidários prévios, contrários ao seu partido a ponto de quererem destruí-lo? Como explicar que tenha cometido tamanho erro? Ou ele está dizendo que escolheu pessoas segundo critérios políticos que supunham a expectativa de que eles beneficiassem seu governo e partido sempre que necessário, mas que, para sua surpresa, tomaram decisões vistas como sendo “um ponto fora da curva…”? E os supostos 20% de conteúdo jurídico, estavam certos? Se certos, não invalidaram os 80% políticos ao se ater às exigências da Constituição?
Lula não se preocupa muito em esclarecer o que realmente pensa da ação do Supremo, cujas decisões foram tomadas por uma maioria de juízes nomeados por ele ou por sua sucessora. Pode ser que não entenda direito o que aconteceu, mas o que mais chama a atenção é a contradição entre a defesa retórica que ele e boa parte do seu partido fazem dos princípios democráticos e a incapacidade de conviverem com as exigências do império da lei e das regras de fiscalização e controle a que qualquer governo está submetido no regime democrático. Lula e o PT convivem mal com as exigências de independência e autonomia dos poderes do Estado no regime republicado. Querem sempre que o Parlamento esteja curvado às imposições do Executivo, e no Judiciário tendem a ver apenas uma instância que deveria convalidar suas escolhas, mesmo elas sendo objeto de crítica ou de contestação pública. Na democracia de Lula e do PT, os conceitos de accountability e de controle do abuso do poder não existem; haja visto, por exemplo, a reação do ex-presidente e do PT sempre que o TCU apontou (ou aponta) irregularidades em obras do governo federal. Lula ameaçou apresentar um projeto de lei para limitar os poderes de fiscalização do TCU. Não surpreende, portanto, que os desvios do seu partido, a exemplo do mensalão, sejam vistos apenas como a repetição do que os outros partidos fizeram ou fazem. É como se dissessem que a corrupção dos outros, que também existe, legitima a deles.
Na entrevista Lula admitiu que vai haver mais manifestações contra o governo esse ano, mas não revelou o que pensa a respeito. Nisso vale a pena contrastar a sua opinião com o que disse outra grande personalidade brasileira em uma entrevista dado à revista Time de 21 de abril. Perguntado sobre como avalia as críticas segundo as quais o governo fez muitas concessões à FIFA enquanto ignorou, de certo modo, necessidades da população, Pelé disse que vê boas razões para os protestos e críticas como de 2013. E acrescentou, “… mas o povo também está reclamando da corrupção. Eu penso que isso é correto”. Há uma significativa diferença aqui com as opiniões de Lula e de membros do governo do PT. Mas Pelé acrescentou, depois, que acha que a Copa abriu excelentes oportunidades para o turismo e os negócios no país, e que os atletas que atuarão nos jogos não têm nada a ver com a corrupção. Fez então uma inflexão até certo ponto compreensível para alguém que ocupou o papel de destaque que ele teve no futebol brasileiro, mas que de certa forma evidencia uma visão insuficiente do processo democrático: “Os atletas promovem o Brasil. Por que as pessoas que protestam querem prejudicar a Copa?”. Pelé é inteligente e sabe que os manifestantes não querem prejudicar a Copa pura e simplesmente, mas sim se utilizar da oportunidade aberta pela envergadura do evento, tanto interna como externamente, para amplificar os seus protestos e as suas críticas. A visão que ele tem fica mais clara com uma observação final sobre o tema: “Vamos esperar a Copa terminar e depois colocar os políticos e os criminosos na cadeia”.
O que há de interessante nessas duas entrevistas é o que elas revelam sobre a concepção de democracia de dois personagens importantes da vida pública brasileira contemporânea. Num caso é a velha perspectiva instrumental da democracia: ela vale se permitir que os seus adeptos cheguem ao poder e nele permaneçam, mesmo que isso seja ao custo de abrir mão de parte dos seus princípios ou mesmo abusar do poder para beneficiar o seu partido; no outro é uma noção tão genérica da democracia que não percebe que parte da tarefa de controle dos desvios, como no caso da corrupção, consiste em tornar conhecidos assim que possível os fatos e os atores envolvidos para evitar que sejam esquecidos quando a percepção e a crítica estiverem esmaecidas pelos resultados dos grandes eventos. Na tradição brasileira de impunidade com os mal feitos, não é uma boa política deixar para cobrar depois, o controle para ser efetivo tem de começar assim que o desvio é detectado.
Antes de terminar, uma nota final se impõe. As duas entrevistas citadas aqui, de dois personagens importantes por tudo que fizeram e pelo que representam para o povo brasileiro, me fizeram lembrar de uma observação de Albert Camus no caderno intitulado Esperança do Mundo, de abril de 1937: “A necessidade de ter razão, marca uma inteligência grosseira”.
Fonte: Estadão, 30/04/2014.
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