Nestes últimos dias, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem desafiado a própria fama de infalível em estratégias políticas com uma série de “pisadas na bola”, como se diz na gíria futebolística, que ele tanto aprecia, num território no qual sempre desfilou com desenvoltura.
Enquanto os adversários tucanos se engalfinhavam em lutas internas intermináveis e injustificáveis para escolher o candidato à sucessão de Gilberto Kassab (PSD) na Prefeitura de São Paulo, Lula não ouviu lideranças locais, federalizou o pleito e lançou Fernando Haddad com a justificativa de que aposta no “novo” e repete a audácia de ter indicado Dilma Rousseff para presidente, em 2010. O risco é que, se Haddad perder, dará a Dilma a oportunosa ensancha de mostrar que ela não ganhou só por causa do apoio dele, mas teve méritos próprios.
A aposta isolada de Lula ignorou a lição do poeta britânico William Congreve, que, no século 17, constatou o óbvio ululante: “Não há no céu fúria comparável ao amor transformado em ódio nem há no inferno ferocidade como a de uma mulher desprezada”. Da mesma forma como, segundo Arnaldo Jabor, teria escolhido Dilma para lhe suceder por imaginar que, sendo mulher, ela não o trairia, pensou que, depois de pisar nos calos da senadora Marta Suplicy (PT-SP), pudesse contar com seu apoio leal e entusiástico na campanha do favorito. Deu no que deu: a ex-prefeita virou a “fera ferida” da canção de Roberto Carlos e é, ninguém duvide, o maior empecilho para os planos de Lula conquistar uma vitória pessoal no pleito em São Paulo, cujo eleitorado lhe tem sido historicamente hostil. Ele próprio perdeu para José Serra e para Geraldo Alckmin e seus candidatos Marta Suplicy e Aloizio Mercadante Oliva foram derrotados por José Serra, ela também por Gilberto Kassab há quatro anos, além de Dilma Rousseff para o mesmo Serra nas urnas paulistanas. Outra lambança de Lula na mesma disputa foi deixar-se fotografar afagando o “filhote da ditadura” Paulo Maluf em troca do apoio do Partido Progressista (PP).
Os 95 segundos do PP malufista no horário gratuito, cedidos em troca dos afagos no jardim da mansão do dr. Paulo, geraram a crise da saída da ex-prefeita Luiza Erundina da chapa lulista, numa evidência de que, como o crime, o “neomalufismo” poderá não compensar.
No afã de eleger Haddad, o ex-presidente passou a seu eleitorado devoto e leal a impressão de Kassab – que se dispôs a apoiar o favorito dele e chegou a comparecer a uma reunião petista – lhe ter passado a perna. Tenha sido ou não esperteza do prefeito, a iniciativa dele empurrou o ex-governador José Serra para a disputa e convenceu seus desafetos no PSDB a compreenderem que a única forma de manter a oposição ao poder federal na maior prefeitura do País será apoiá-lo sem restrições, embora tapando o nariz.
Outro episódio posterior ao diagnóstico do câncer na laringe desmentiu mais até do que a fama de infalível do ex-presidente, pois contradisse um histórico de bom senso que o tem aproximado do cidadão comum, responsável por vitórias dele e de seus candidatos e altíssimos índices de popularidade por eles obtidos. Trata-se do encontro com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes no escritório do amigo comum Nelson Jobim. Mesmo que a versão do interlocutor – segundo quem Lula apelou para ele evitar que o julgamento do mensalão coincidisse com as eleições municipais – não seja absolutamente fidedigna, não faz sentido a exposição a que ele e alguns membros da última instância do Poder Judiciário – Gilmar, entre eles – se expuseram, às vésperas de um momento relevante como as sessões nas quais se julgará o maior escândalo de corrupção atribuída a seu governo na vigência do gozo da aposentadoria. Nada justificaria tal cruzada peripatética estando fora da Presidência, período no qual prometera se comportar com o máximo de discrição, e durante delicado tratamento de saúde.
Fato é que quem se surpreende com essas derrapadas do líder tido como infalível desconhece sua biografia. Nem sempre Lula foi sequer sensato como se pensa que foi. Em 1978, o ex-governador Cláudio Lembo, atendendo ao chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, lhe pediu apoio para a anistia e a volta dos exilados. Ele negou. Em 1985, apoiou a expulsão do Partido dos Trabalhadores (PT) dos deputados Bete Mendes, Airton Soares e José Eudes porque votaram em Tancredo Neves contra Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, alegando que os dois candidatos eram “farinha do mesmo saco”. Em 1988, o partido só assinou a Constituição dita “cidadã” por apelo insistente do presidente do Congresso Constituinte, Ulysses Guimarães (PMDB-SP). No mesmo ano, omitiu-se na campanha da candidata petista à Prefeitura de São Paulo, Luiza Erundina, que tivera a ousadia de vencer seu favorito, Plínio de Arruda Sampaio, na convenção. Em 1993, apesar de ter participado da derrubada de Fernando Collor no Congresso, o PT recusou-se a participar do governo tampão do vice Itamar Franco e suspendeu a filiação da mesma Erundina, porque ela ousara desafiar novamente o chefão ao aceitar a Secretaria da Administração Federal – o que a levou a migrar para o PSB em 1997.
Aconselhado por Aloizio Mercadante Oliva, Lula levou os petistas a votarem contra o Plano Real, acusando-o de “estelionato eleitoral”, posição que o levou a duas derrotas eleitorais seguidas no primeiro turno para o criador do maior projeto social da História do País, Fernando Henrique Cardoso. E, na oposição, se opôs ferozmente à privatização, à adoção do câmbio flutuante, às metas de inflação, à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e aos programas sociais propostos pelos tucanos.
Fiel à condição confessa de “metamorfose ambulante” (apud Raulzito Seixas), contudo, elegeu uma anistiada presidente. E agora enfrenta o desafio de provar que o “neomalufismo” não é crime e pode compensar. Se conseguirá só Deus sabe.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 04/07/2012
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