Prestes a encerrar seus oito anos de governo, o presidente Lula descerá a rampa do Palácio do Planalto e abrirá um importante capítulo da nossa história. Esta coluna, com frequência, criticou as sombras do governo que se põe. Mas a honestidade intelectual e o dever de isenção, pré-requisitos de quem pretende fazer jornalismo ético, me obrigam a reconhecer o saldo favorável dos dois governos do presidente Lula.
O empenho de justiça social do presidente da República, sincero e não apenas eleitoreiro, foi sua marca. Responsável direto pela incorporação de milhões de brasileiros que viviam à margem do mercado, o fabuloso crescimento do consumo é um vigoroso atestado de inclusão. O Programa Bolsa-Família, operado com competência e sensibilidade humana pelo ex-ministro Patrus Ananias, deu certo. Legiões de brasileiros viviam em situações de extrema pobreza. O tráfico de drogas, brutal e hediondo, alicia mão de obra no mercado do desespero e da desesperança.
As políticas sociais do governo, formuladas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, foram, a curto prazo, um bálsamo na chaga da miséria e da exclusão. A vida dos pobres melhorou. E isso é importante.
Governos, há décadas, viveram de costas para a gravíssima crise social. A elite brasileira não soube ou não quis assumir sua parcela de responsabilidade. Agora, o rosto da fome toca no nervo exposto da insensibilidade. Para os homens de bem, no entanto, a situação pode ser um vibrante apelo à solidariedade, fortemente embotada pela cultura do egoísmo.
Não é humano, por exemplo, se queixar dos incômodos urbanos provocados pelas correntes migratórias. É preciso ter a coragem de reconhecer a injustiça que se esconde no triste nomadismo. O sertanejo nordestino, tão brasileiro quanto nós, não migra por prazer. Ele é expulso de sua terra pela fome, pela infame indústria da seca, pela incompetência governamental e pela corrupção que, há décadas, transforma verbas públicas em negócios privados.
Lula sofreu na própria carne o drama do retirante. Seus dois mandatos, acertadamente, privilegiaram o desenvolvimento do Nordeste. Sua popularidade não é fruto do acaso ou da força do seu carisma. Ele, de fato, melhorou a vida das pessoas. Basta pôr os pés no Recife, por exemplo, para sentir a ebulição de uma economia viva. Por isso, o povo despejou um mar de votos na candidata de Lula e reelegeu o governador Eduardo Campos.
Um Sul rico e progressista, cercado por guetos de pobreza aviltante, é injusto e inviável. Trata-se de uma bomba-relógio. E já se ouvem as explosões no coração dos grandes centros urbanos. Imagens de crianças famintas são capazes de provocar matérias especiais e emoções momentâneas. Discute-se, com razão, a respeito dos desvios éticos da instrumentalização política da miséria. Poucos, no entanto, vão ao cerne do drama.
Político rápido e intuitivo, Lula evitou o manejo populista da economia. Manteve a política econômica iniciada por seu antecessor. Alguns, equivocadamente, dizem que Lula nada fez. Só seguiu na rota traçada por Fernando Henrique Cardoso. Não me parece pouco. Poderia ter feito o contrário. Não fez.
Seu período registrou um crescimento econômico de 37,3% (média anual de 4%). As exportações triplicaram. A inflação caiu de 12,5% para 5,6% ao ano. A taxa básica de juros reais também baixou, de 15% para 6%. O desemprego foi fortemente reduzido. A dívida externa foi paga. Não foi pouca coisa.
Quanto aos costumes políticos, o desempenho do governo Lula foi deplorável. Lula é, sem dúvida, um animal político e um grande comunicador. Sua história de vida, carregada de carências e sofrimento, enrijeceu sua personalidade e o transformou num homem decidido a vencer a qualquer preço. Mas é precisamente na têmpera da sua obstinação que reside a sua maior fragilidade ética.
O projeto de poder de Lula não admitiu barreiras éticas. Em nome da governabilidade e da perpetuação de seu projeto, Lula se aliou ao que de pior existe na vida pública brasileira. A relativização dos valores e a condescendência com os companheiros e aliados envolvidos em graves irregularidades viraram rotina na fala presidencial.
“Errar é humano”, disse Lula, referindo-se aos casos mais emblemáticos de corrupção. O presidente da República, subestimando a gravidade do mensalão, acariciou a cabeça de petistas pilhados em situações no mínimo constrangedoras.
Os pequenos erros mencionados por Lula derrubaram, em 2006, o ex-ministro José Dirceu, destituíram dezenas de diretores de estatais e mandaram para o espaço a cúpula do partido de Lula. De lá para cá, outros escândalos se multiplicaram como cogumelos.
O governo Lula, seguindo os cânones da práxis (a manipulação da verdade se justifica na luta pelo poder), instaurou a cultura do cinismo na vida pública deste país. A simples leitura da imprensa oferece um quadro assustador da estratégia. Esbofeteou-se a verdade num escala sem precedentes. As responsabilidades submergiram num caldo pastoso e amorfo. Assistiu-se ao lusco-fusco da cidadania.
O presidente Lula tem méritos indiscutíveis. Iniciou o resgate da dívida social, foi prudente na condução da economia e deu ao Brasil, pela força de seu carisma e pelos bons ventos que sopraram nos seus dois mandatos, grande prestígio internacional e notável popularidade interna. Além disso, ao contrário de seus colegas, não entrou no desvio do terceiro mandato. Foi injusto em seus recorrentes ataques à imprensa independente, mas não concretizou nenhuma ação contra as liberdades públicas.
Feitas as contas, apesar das ressalvas, o presidente Lula escreveu um belo capítulo da nossa história. A todos, feliz 2011!
Fonte: O Estado de S. Paulo, 27/12/2010
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