É possível que, ao declarar-se à presidente Dilma, o ex-ministro Carlos Lupi tenha se inspirado na Legião Urbana, uma das melhores bandas brasileiras de todos os tempos. Uma das músicas mais conhecidas do grupo é “Pais e filhos”, cuja letra traz um sábio conselho:
“É preciso amar
Como se não houvesse amanhã.”
O amanhã existe. Pode demorar horas, dias, anos ou vidas, mas chega. O amor, por outro lado, ao contrário dos contos de fadas, nem sempre é sublime, incomensurável e pode ter graduações. O poeta Affonso Romano de Sant”Anna comentou, em crônica: “O melhor amor é o que desperta em nós os nossos melhores sentimentos.” Isso é intrigante, pois sugere a existência de amores melhores e piores.
Pura verdade! Há casos em que o amor, de tão ruim, mata.
Com Pablo Picasso era assim. Casou-se sete vezes, mas algumas de suas mulheres se suicidaram, outras enlouqueceram. A convivência era massacrante. Tão logo vivia um novo amor, Picasso retratava-o em suas telas, mas quando a paixão ia embora pintava imagens distorcidas e até monstruosas. Suas mulheres sabiam quando estavam sendo trocadas simplesmente ao observar os seus trabalhos. O poeta francês Paul Éluard chegou a dizer: “Picasso ama intensamente, mas destrói o que ama.”
Como a arte e a vida estão interligadas – no melhor e no pior – é até possível que exista algo de Picasso em Lupi. A sua insistência em manter-se no cargo fez muito mal à sua “amada”, ao seu partido e ao governo. Caso houvesse solicitado afastamento assim que surgiram as primeiras denúncias da revista “Veja”, teria evitado o constrangimento a que Dilma foi submetida, ao receber carta inédita da Comissão de Ética Pública recomendando-lhe a exoneração.
Aliás, a Comissão fez o que já deveria ter feito em ocasiões semelhantes. Advertiu formalmente o então ministro, sob o ponto de vista ético, e propôs a sua demissão. Afinal, até hoje ninguém sabe quem pagou o jatinho particular que conduziu o ministro pelo interior do Maranhão.
Não havia saída. Se viajou a trabalho, não poderia aceitar carona em avião arranjado pelo diretor de uma ONG, algo proibido pelo Código de Conduta da Alta Administração Federal. Na hipótese de ter viajado a serviço do seu partido, não poderia ter recebido diárias do ministério.
No rol de denúncias, também constava a acumulação de cargos públicos em Brasília e no Rio de Janeiro, dezenas de convênios da Pasta com instituições privadas dirigidas por militantes do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e relatos de pedidos de propinas por alguns de seus assessores, com a finalidade de criar sindicatos ou evitar transtornos para as ONGs que prestavam serviços ao ministério.
Na semana passada, de forma surpreendente, Dilma pediu mais detalhes à Comissão de Ética, protelando o inevitável. O que niguém entendeu foi o porquê de Dilma ficar por tanto tempo prisioneira desse “amor” destrutivo. É provável que tenha levado em conta o início de sua vida política no PDT e o receio de ver a Força Sindical na oposição. Há quem tenha pensado na votação da Desvinculação das Receitas da União (DRU), fato que a torna, de certa forma, refém dos partidos aliados. Há, ainda, os que imaginaram que a presidente não queria antecipar o rodízio ministerial que promete acabar com as “capitanias hereditárias”.
Seja como for, Dilma sentiu-se intimidada quando a faxina chegou a um dos cômodos mais sujos. A hesitação provocou reflexos negativos na sua imagem de não compactuar com a corrupção. Era a bala de prata que faltava. O ministro, que se gabava de interromper a sequência de demissões, cumpriu o ritual dos anteriores – saiu na noite de domingo. Com as suas bravatas, somente agonizou um pouco mais.
Neste episódio, o “amanhã” demorou, mas chegou. O ministro Lupi já não era “correspondido”. Era um fantasma vagando pela Esplanada, completamente desmoralizado. Devia sentir ansiedade em cada telefonema do Palácio ou mesmo na ausência deles. Começava o dia lendo o Diário Oficial da União à procura do seu nome na relação dos exonerados.
Ainda que tarde, a presidente fez bem ao dar fim à novela. É possível que ao fazê-lo tenha se recordado da declaração de “amor” do ministro e do recado de um dos maiores compositores da música popular brasileira, o inesquecível Cartola. No seu clássico “O mundo é um moinho”, em versos ele canta:
“De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavastes com teus pés…”
Fonte: O Globo, 06/12/2011
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