Trump é o agente maior de uma ordem que despreza as garantias democráticas
No domingo passado, o presidente americano, Donald Trump, voltou a enxovalhar a imprensa com mais uma de suas estridências de mau gosto (uns e outros podem dizer que foi apenas uma molecagem inconsequente, mas o caso é bem mais sério). Num acesso de incontinência performática, Trump fez circular nas redes sociais uma montagem em vídeo em que aparece esbofeteando um sujeito cujo rosto foi substituído pelo logotipo da rede de notícias CNN. O objetivo é insultar a CNN, que o presidente americano prefere chamar de “FNN (Fraud News Network)”.
O vídeo original que serviu de base para a montagem é mais antigo. Nele o então empresário Donald Trump, muito antes enveredar pela política, participa de um show de “luta livre”, da qual é fã declarado. Esse gênero de entretenimento, como todos sabemos, não é bem um enfrentamento justo entre dois competidores – é apenas uma encenação de malabarismo e pernadas, todas fajutas. Com golpes coreografados e sangue artificial carregado em bisnagas escondidas, a tal luta livre não passa de “marmelada”. Na luta livre tudo é mentira – e até nisso, no gosto pela violência como divertimento, Donald Trump prefere a mentira.
Mas voltemos ao vídeo original. Nele o hoje presidente americano está em traje de gala. Espevitado, vai até a beira do ringue e ali mesmo, do lado de fora do tablado, esbofeteia outro sujeito, que também está de smoking. A refrega fake se resolve em poucos segundos, num sketch muito rápido. A aparição relâmpago do então magnata é ofertada como um brinde à plateia do circo. Agora, com as adulterações das imagens, as doses de mau gosto sobem à segunda potência e o que era apenas uma performance grotesca se converte numa agressão política que não tem graça nenhuma: o presidente da maior potência militar e econômica do planeta busca no pastelão da luta livre o repertório agressivo para ridicularizar e espancar moralmente a instituição da imprensa.
Não, não é uma tirada de humor, como alguns podem supor. Não há humor na conduta de Trump em relação ao jornalismo. Há intolerância, prepotência e assédio moral. Ainda que se admita um toque de palhaçada circense no vídeo original, não há como ver algum resquício de humor na campanha de Trump contra os repórteres. O que há é o oposto disso: Trump não suporta o humor fino com que o criticam e por isso apela para a violência cênica e verbal contra aqueles que não tolera. A linguagem de violência espetacular de que ele se vale, a luta livre, é inteiramente fake em sua “estética”, mas tragicamente deletéria em seu efeito prático. Trump se vale de uma violência física de mentirinha (a marmelada da luta livre) para promover uma violência real, que sabota a convivência democrática. Não percamos de vista esta dimensão: os tijolos do discurso de Trump são peças de pura mentira performática, mas o efeito desse discurso é efetivo, substancial, verdadeiro.
A cada dia fica mais evidente que Donald Trump atua, em ritmo de reality show, como um inimigo da democracia. À primeira vista parece que ele está em guerra “apenas” contra a imprensa, como ele mesmo declarou mais de uma vez (ele se diz “em guerra contra a mídia”). No fundo, porém, seus ataques têm como alvo, mais do que dois ou três jornais e uma ou duas redes de televisão, a própria normalidade democrática, tanto dentro como fora dos Estados Unidos. Trata-se de uma guerra simbólica, que ainda não foi plenamente compreendida. Trump é o agente maior de uma ordem que despreza as garantias democráticas. Os ataques que ele desfere contra a imprensa são a parte mais visível de uma estratégia mais obscura.
Em sua cruzada contra as liberdades, ele acusa as redações profissionais (como as da CNN e a do jornal The New York Times) de difundirem as famigeradas “fake news” (notícias falsas). Ora, essa acusação é em si mesma uma fraude. As chamadas fake newsconstituem um fenômeno típico das redes sociais e já vêm sendo bastante estudadas. Não há possibilidade de engano aí. Embora as redações profissionais cometam erros, e muitos, embora elas também publiquem mentiras, as fake news, com esse nome, constituem outra modalidade de enganação, numa escala incomparavelmente superior. As fake news, especialmente as que ajudaram a eleger Donald Trump, não são produzidas e publicadas por jornalistas trabalhando em redações independentes (como as da CNN ou as do Times), são criadas por estruturas subterrâneas, talvez russas, e propagadas não pela imprensa, mas contra a imprensa.
São muitas as demonstrações de que a imprensa não fabrica as fake news tal como elas vêm sendo identificadas e descritas, mas funciona como um antídoto seguro contra elas. Até nisso, portanto, Trump mente. Ele mente quando estabelece um sinal de igual entre fake news e imprensa.
Esse tipo de embaralhamento mal-intencionado faz escola e angaria seguidores, mesmo que involuntários. Dia desses, no Brasil, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, negou ter a intenção de trocar o comando da Polícia Federal, acusou o noticiário de promover a “pós-verdade”. Ora, a expressão “pós-verdade” não designa o conteúdo gerado pelas redações profissionais, mas uma era em que a boataria e as mistificações sem fundamento, fomentadas pelas redes sociais, prevalecem sobre a verdade dos fatos e favorecem os interesses dos que atropelam a democracia para governar. Gente como Trump e Putin são grandes beneficiários da era da “pós-verdade”. A imprensa, por definição, é vítima, não agente da “pós-verdade” ou das fake news. Quando um ministro da Justiça dá curso a esse tipo de confusão, ajuda, ainda que inadvertidamente, a minar a cultura democrática. Com toda a legitimidade, o ministro tem o direito de apontar erros do jornalismo, mas debitar à imprensa a emergência da “pós-verdade” é um disparate.
Entre lapsos e golpes de mau gosto, a luta livre contra a imprensa vai piorar.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 06/07/2017
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