Vamos pensar um pouco, com calma, para ver se dá para entender melhor o que está acontecendo na frente de todo o mundo. O ex-presidente Lula foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro a pouco mais de doze anos de cadeia ─ crimes mais graves do que fazer um apontamento de jogo do bicho, por exemplo, e que por isso têm de ser punidos com pena de prisão fechada, segundo o que está escrito na lei. Lula foi condenado a nove anos e meio, num primeiro julgamento, pelo juiz Sergio Moro, da 13ª. Vara Criminal Federal de Curitiba, em 12 de julho do ano passado ─ após quase dez meses de depoimentos, perícias, exame de provas e contra-provas, exigências sucessivas dos advogados e mais todos os etcs., de uma ação penal iniciada contra ele em setembro de 2016. Foi uma sentença de 218 páginas, fundamentada em cerca de 1.000 itens, na qual foram ouvidas 99 testemunhas, das quais 73 apresentadas pela defesa. Até aqui, tudo dentro da lei e das garantias devidas ao réu, certo? Certo.
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Lula apelou da sentença, então, para o estágio superior seguinte, o TRF-4 de Porto Alegre. Ali foi julgado em 24 de janeiro deste ano por três desembargadores, condenado de novo, por 3 a 0, e sua pena foi aumentada para doze anos no xadrez. Recorreu em seguida para o degrau acima, o STJ de Brasília, onde sua reclamação foi julgada por cinco ministros; perdeu outra vez, agora por 5 a 0. Voltou, enfim, ao mesmo TRF-4 que já tinha lhe socado 12 anos no lombo, e perdeu mais uma ─ foram outros 3 a 0. Resumo da peça: o ex-presidente está se defendendo desde setembro de 2016 e não teve, até agora, um único voto a seu favor. Foi zero, zero e zero, mais a sentença inicial de Moro. O que seria preciso, ainda, para se chegar à conclusão que Lula é um criminoso condenado pela Justiça e teria de ir para a cadeia? Mais nada. Não para a cabeça de uma pessoa normal.
Eis aí porque a situação que se vive no momento é perfeitamente incompreensível, mesmo pensando com toda a calma. É um jogo que está pelo menos em 9 a 0, já passou dos acréscimos e só não acaba porque Lula não quer que acabe. O Supremo Tribunal Federal e os políticos, em peso, ficam agachados diante do homem, tratando de servi-lo ─ ou com medo de suas ameaças. Qual é o problema dessa gente? O direito de defesa para o réu foi assegurado plenamente desde o primeiro minuto do processo; pouquíssimos brasileiros, salvo amigos seus como um desses Odebrecht ou Joesley, que têm bilhões para gastar com advogados, jatinhos, peritos, computadores, pesquisas, caravanas de “apoio” e por aí afora, conseguiriam ter uma defesa tão completa e tão cara quando Lula teve até agora.
Dizer que é preciso respeitar a “presunção de inocência” até “prova em contrário”, como repetem seus despachantes no STF, é simplesmente uma piada ─ ou, mais exatamente, uma tentativa alucinada de fazer você de palhaço. É óbvio que todo acusado é inocente até prova em contrário ─ mas só até prova em contrário. Uma vez feita a prova, o réu deixa de ser inocente; passa a ser culpado. Na Justiça de qualquer país civilizado do mundo, a sentença, a certa altura, é a prova. Afinal, alguma autoridade, à uma hora qualquer, tem de dizer se as provas apresentadas até então valem ou não valem; do contrário, nenhum processo acabaria nunca, em lugar nenhum do planeta. No caso de Lula, a prova foi feita quando o que se chama “segunda instância”, ou o TFR-4 de Porto Alegre, decidiu que a sua condenação estava fundamentada por fatos. Fim de jogo. Ele ainda pode continuar apelando, mas teria de fazer isso na prisão. É assim nos Estados Unidos, em toda a Europa, no Japão: uma vez condenado em segunda instância, o sujeito vai para a cadeia. Faz todo o sentido. No Brasil, menos de 1% de todas as sentenças confirmadas em segunda instância são modificadas, depois, em algum tribunal superior.
Esse tumulto em torno de Lula só existe porque a suprema corte de Justiça do Brasil decidiu governar o país como uma junta de ditadura; manobra para ele ser declarado, na prática, impune por qualquer crime passado, presente ou futuro. Querem fazer em favor de Lula o mesmo que o regime militar fez em favor do delegado Sergio Fleury, do DOPS de São Paulo, em 1973: condenado como torturador, ganhou o direito de apelar em liberdade pela “Lei Fleury”. Os donos do STF conseguem, a cada dia, ficar mais parecidos com a “corte suprema” da Venezuela, que torna legal tudo o que os gangsteres do governo mandam que seja legalizado. São, em seu conjunto, mais um rei nu neste país.
Fonte: “Veja”, 31/03/2018