Há quase dois meses, no dia 17 de maio, neste mesmo espaço, apontei a distorção perversa trazida pelo recrudescimento do Estado-anunciante no Brasil. É bem verdade que não foi a primeira vez que toquei no assunto. Há pelos menos dez anos essa nova modalidade do patrimonialismo pátrio – o uso de verbas públicas para fins de propaganda partidária (que corresponde a interesses particulares) – vem crescendo a um ritmo que clama por atenção. No artigo de 17 de maio traduzi as razões de preocupação em números, com as cifras rombudas que as autoridades despejam anualmente no mercado publicitário. No mesmo artigo listei as razões pelas quais a hipertrofia do Estado-anunciante é, por definição, antidemocrática.
Agora peço licença ao leitor para insistir. O motivo é muito simples: de dois meses para cá, outros três articulistas – Fernando Henrique Cardoso, J. R. Guzzo e Vittorio Medioli – passaram a denunciar o mesmo problema, o que pode prenunciar algo de novo no horizonte.
Antes de relermos o que escreveram os articulistas, convém deixar bem claro por que é inaceitável a hipertrofia do Estado-anunciante. Ele se impõe como uma força unilateral, pró-governo, que desequilibra com o peso de milhões e milhões de reais as disputas eleitorais e a pluralidade do debate político no País. No limite, tende a sabotar o princípio da alternância no poder, uma vez que só existe para convencer o eleitor de que o governo em curso (qualquer que seja ele) é o melhor do mundo.
Tomemos o exemplo da cidade de São Paulo, que terá eleições para prefeito este ano. Aqui a Prefeitura pôs no ar, no primeiro semestre, uma campanha que mais parecia uma avalanche propagandística para entorpecer o cidadão. A pretexto de “informar” o contribuinte, as peças promocionais repetiram à exaustão o slogan “antes não tinha, agora tem”, tentando provar que hoje o paulistano conta com serviços de saúde e educação deslumbrantes, esplêndidos, paradisíacos, gozosos como nunca teve.
Óbvio número 1: esse tipo de publicidade é propaganda eleitoral antes da abertura do período eleitoral regulamentar. É partidária, ostensivamente partidária. A publicidade governista, ainda que formalmente não descumpra a lei, não está propriamente em sintonia com os princípios que orientam a legislação eleitoral vigente. Fingindo “informar” o eleitor, faz campanha eleitoral explícita e antecipada, ainda que não fale de candidatos.
Óbvio número 2: todos os governos agem assim. Todas as prefeituras, todos os governadores dos Estados e, claro, o governo federal, que é incontestavelmente o campeão invicto nesse esporte nacional.
A solução para conter o Estado-anunciante é uma só: a lei teria de estabelecer, se não a proibição total, ao menos uma barreira sólida de contenção contra as despesas públicas em campanhas publicitárias pagas. Simples assim. Bem sabemos que o Congresso dificilmente tomará essa pauta como prioridade, pois os parlamentares, comprometidos com agendas partidárias, não vão espontaneamente contrariar o apetite que os governantes têm por visibilidade. Portanto, é preciso quebrar a inércia.
Para quebrá-la a mobilização deve nascer da opinião pública. De três semanas para cá, outras vozes passaram a falar contra o Estado-anunciante. Não exageremos com a esperança, mas talvez elas contribuam para um pouco de lucidez no ambiente político. Uma dessas vozes é a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. No dia 3 de junho, um domingo, em sua coluna aqui, no Estado, nesta mesma página, ele escreveu: “Será que é democrático deixar que os governos abusem nas verbas publicitárias ou que as empresas estatais, sub-repticiamente, façam coro à mesma publicidade sob pretexto de estarem concorrendo em mercados que, muitas vezes, são quase monopólicos? (…) O efeito deletério desse tipo de propaganda disfarçada não é tão sentido na grande mídia, pois nesta há sempre a concorrência de mercado que a leva a pesar o interesse e mesmo a voz do consumidor e do cidadão eleitor. Mas nas mídias locais e regionais o pensamento único impera sem contraponto”.
O ex-presidente alerta para o peso que as verbas públicas adquiriram nos veículos de médio porte, que, muitas vezes, acabam se tornando dependentes dessa receita. Ora, se são economicamente dependentes das contas governamentais, eles talvez percam independência editorial quando se trata de criticar a administração pública. Também por isso, o Estado-anunciante hipertrofiado é indesejável na democracia.
A segunda voz que se levantou foi a de José Roberto Guzzo, ex-diretor e atual colunista da revista Veja. Em sua coluna de 6 de junho, sob o título Nós e os outros, ele definiu bem a distorção com que temos convivido, que seria repelida em qualquer democracia: “Dá para imaginar o governo da Itália, por exemplo, gastando fortunas na mídia para dizer ‘Itália – um país para todos’? Ou algo assim: ‘Prefeitura de Londres – antes não tinha, agora tem’? Não dá. O funcionário que sugerisse uma coisa dessas seria provavelmente encaminhado a uma instituição psiquiátrica”.
Além de FHC e de Guzzo, Vittorio Medioli, ex-deputado federal por Minas Gerais, primeiro pelo PSDB e depois pelo PV, e proprietário da Editora Sempre, que publica os jornais O Tempo e SuperNotícias, em Belo Horizonte, argumentou na mesma linha. Em editorial publicado em O Tempo, de 10 de junho, Medioli afirmou: “O aspecto nefasto desse acintoso desperdício, que solapa verbas destinadas a quem as gerou (os contribuintes), paradoxalmente se verte contra os próprios, pois até um imberbe jovem compreende que essa mídia, além de cara, frauda uma realidade bem diferente e desequilibra eleições”.
Que surjam outras vozes. Se a sociedade não falar, a propaganda governamental vai virar um monólogo no Brasil.
Fonte: O Estado de S. Paulo
São verbas usadas para amaciarem editoriais!