Seis anos depois de crise de 2008, seu maior legado, o excesso de endividamento público, se tornou o grande desafio dessa segunda década do século XXI. A despeito da estagnação generalizada, sobretudo nas economias muito endividadas, e das constantes alusões à Depressão, já ficou claro que as receitas aplicadas para os problemas dos anos 1930 – o aumento do gasto público -, não servem para uma situação que se assemelha, na verdade, à dos anos 1940 e 1950, quando a “dominância” fiscal prevalecia nos países que tinham estado em guerra.
[su_quote]Um terço da dívida pública interna está “encalhada” e vem sendo absorvida pelo Banco Central[/su_quote]
As soluções para reduzir a dívida utilizadas depois de 1945 são as mesmas apontadas no capítulo sobre dívida pública do popularíssimo manual sobre o “Capital no Século XXI”, de Thomas Piketty, em diferentes combinações: austeridade, inflação ou algum imposto confiscatório.
Nada disso parece muito animador, mas, nesse assunto, Piketty deixa de perceber uma quarta possibilidade, que tem a ver com uma simples comparação entre a dívida e o que chama de “capital” (e a maior parte dos economistas chama de “riqueza”). Este cotejo leva facilmente à conclusão de que o problema do endividamento é tanto menos sério quanto mais rico é o país.
Os EUA são ricos em um sentido muito objetivo e que Piketty ajudou a esclarecer: a riqueza acumulada na forma de patrimônio imobiliário e instrumentos financeiros é cerca de cinco vezes o PIB.
As estimativas para o Brasil, que não são de Piketty, mas que seguem métodos semelhantes, são de um número da ordem de duas vezes o PIB.
Antes da crise, em média, os países ricos tinham sua dívida pública na faixa de 65% do PIB, o que corresponderia a menos de 15% da sua riqueza. Os emergentes tinham, em média, dívidas equivalentes a 30% do PIB, representando frações de sua riqueza ligeiramente maiores que as dos países ricos.
Pois bem, o que se passa em 2008?
Embora cada país tenha o seu próprio enredo, todos os que experimentaram a crise hoje se parecem, pois o que restou foi um imenso desastre fiscal.
A dívida pública dos EUA aumentou de 64% para 106% do PIB entre 2007 e 2014. Na Inglaterra foi de 44% a 92% no mesmo período, na França de 63% para 95%, na Irlanda de 24% para 112%, na Espanha de 37% para 99%, em Portugal de 68% para 131%, na Grécia de 107% para 174% e no Japão de 183% a incríveis 245%.
O desastre teve soluções diferenciadas em cada lugar. No caso dos EUA, por exemplo, o Tesouro teve de procurar tomadores para algo como US$ 6 trilhões (42% do PIB de 2010). Grosso modo metade dessa dívida nova foi para o banco central americano (Fed), que atendeu ao desejo de as pessoas fugirem de riscos privados, trocando-os por papéis públicos. A outra metade foi absorvida através de um gigantesco aumento nas reservas internacionais de países emergentes, do Brasil inclusive, ou seja, os EUA foram, em boa medida, “financiados” pela “periferia” que, por sua vez, desejava comprar um “salvo conduto” contra crises cambiais que sempre lhe custaram caro.
Para países com níveis de riqueza na faixa de 500% do PIB, mesmo considerando que mais da metade dessa riqueza é ilíquida, a ideia de acomodar acréscimos de 20% ou 30% em dívida pública não deveria ser tão assustadora. Mas foi um problema imenso para a Grécia, onde a dívida pública aumentou em 74% do PIB, embora não tenha sido o caso para o Japão (cuja riqueza, segundo Piketty, é seis ou sete vezes o PIB), que ganhou 62% do PIB em nova dívida.
A situação do Brasil, nesse turbilhão, é curiosa. Na partida, em 2007, a dívida brasileira já era elevadíssima: 65% do PIB, um número idêntico ao da Alemanha e dos EUA, para um país bem menos rico. Na verdade, como proporção da riqueza, a dívida pública brasileira era maior que 30% em 2007, quando a mesma proporção era de 25% na Grécia.
A dívida bruta do Brasil não sofreu grandes alterações durante o período em que o país manteve um superávit primário perto de 3% do PIB, o que pode parecer paradoxal. A explicação é que o país aumentou brutalmente suas reservas internacionais a partir de meados da primeira década do século XXI, de tal sorte que a dívida líquida efetivamente caiu substancialmente, de cerca de 60% do PIB em 2003 para 33% em 2013.
Pode-se apenas especular sobre o que teria se passado com câmbio e juros caso o Brasil tivesse adotado ao pé da letra o mantra das taxas de câmbio flutuantes e não tivesse emitido dívida em reais para comprar esses dólares e investir em títulos do Tesouro americano. Entretanto, enquanto durou o esforço fiscal, a dívida líquida foi caindo e assim criando um círculo virtuoso de melhoramento fiscal, redução da “dominância” fiscal e redução dos juros.
Em 2008/09, todavia, sob o comando de Dilma Rousseff, começa a se desfazer o esforço fiscal, e com isso se interrompe gradualmente a dinâmica virtuosa de redução na dívida e nos juros. Uma decisão de rara infelicidade e absoluta imprevidência.
Gradualmente se restaura a dominância fiscal e se deteriora o custo, o perfil e o tamanho da dívida pública. Deixa de ser possível reduzir a taxa de juros, como é característico de países com excesso de endividamento e problemas de credibilidade.
Isso se comprova, por um lado, a partir da constância do “custo implícito” da dívida (ou a razão entre serviço da dívida, em todas as suas formas, e o principal), que permanece ao redor de 15% nos últimos anos, a despeito de flutuações na Selic.
Por outro lado, e mais preocupante, cresce a resistência à rolagem dos títulos públicos. No Brasil, diferentemente do que ocorre, por exemplo, com a Grécia, diante do fracasso de um leilão, o Tesouro amortiza os valores não rolados usando recursos de sua conta no BC, conhecida como “a conta única”. Entretanto, em resposta a esta “expansão de liquidez”, o BC vende papéis do Tesouro de sua carteira em condições melhores que aquelas que o Tesouro pretendia, em preço e prazo, e com isso, acaba perfazendo a rolagem que o Tesouro não conseguiu.
Essas operações, conhecidas como “operações compromissadas”, já se aproximam de R$ 1 trilhão para uma dívida total de R$ 3 trilhões. Ou seja, um terço da dívida pública interna está “encalhada” e vem sendo absorvida pelo Banco Central, tal como nos velhos tempos da hiperinflação e atropelando a proibição constitucional de o BC financiar o Tesouro, direta ou indiretamente (CF, Art. 164, §1).
Em resumo, a decisão de Dilma Rousseff de mudar a política fiscal reintroduziu o Brasil num problema do qual estava prestes a se livrar. Foi um erro histórico que parece se encaixar naquele velho paradigma, certa vez descrito por um célebre governador paulista: “Quebrei o Estado, mas fiz meu sucessor”. A malícia se torna infortúnio, todavia, se o sucessor é o próprio.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 18/01/2015.
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