Pela via do processo democrático, ou, de maneira mais prática, pelo voto direto, “outorgamos” aos políticos determinados poderes e pressupomos, como contrapartida, certa responsabilidade e senso cívico, pois em última instância são eles os que decidem pelo conjunto das políticas públicas e pela alocação dos recursos por meio do orçamento público. Além disso, não queremos que esse senso de responsabilidade seja voltado somente para o tempo presente, mas que igualmente leve em conta também o tempo futuro, pois desejamos o bem-estar dos nossos filhos e netos. A ideia é que não penalizemos as gerações futuras pelas escolhas que fazemos hoje; em outras palavras, queremos um mínimo de responsabilidade intertemporal.
Essa é a teoria. Na prática, a sensação é que vivemos num ciclo perpétuo de irresponsabilidade intertemporal, hora pagando por uma conta criada pelos nossos ascendentes e hora criando uma conta a ser paga pelos nossos descendentes. Exemplo disso é o total surrealismo em que vivem nossos congressistas, que, às vésperas das eleições e aproveitando-se da situação combalida do poder executivo, avançam em projetos que podem adicionar uma cifra extra de R$ 100 bilhões ao nosso já arrombado (perdoem o trocadilho) orçamento, deixando assim armada uma bomba-relógio não somente para o próximo governante, mas também para as gerações futuras, já que é impossível rolar-se infinitamente e sem consequências um déficit público da magnitude do nosso. Nem sequer finalizamos as contas para totalização das inoportunas concessões feitas à época da greve dos caminhoneiros que parou o país no mês de maio e já somos novamente pegos de surpresa pela pauta-bomba da vez que incluiu projetos tais como o Refis do Simples Nacional (R$ 8 bilhões), o Refis do Funrural (R$ 13 bilhões), compensações da Lei Kandir (R$ 39 bilhões) e uma série de outras bizarrices propostas pelos congressistas e que criarão desonerações e compromissos a serem pagos futuramente.
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Se serve de consolo, a irresponsabilidade intertemporal também acontece acima da linha do Equador. No caso dos Estados Unidos, o polêmico presidente Donald Trump parece preocupar-se exclusivamente com o curto prazo, executando uma política fiscal expansionista via redução de impostos e concomitante aumento do gasto público, incrementando assim o já astronômico déficit fiscal americano. Para piorar a situação e quebrando um protocolo tácito no qual um presidente jamais critica determinada política de um banco central, assegurando assim sua total independência, Trump sinalizou um descontentamento com a política monetária restritiva que vem sendo conduzida pelo FED via aumento gradual das taxas de juros na tentativa de conter as pressões inflacionárias provenientes do cenário de pleno-emprego no mercado de trabalho assim como certa inflação de custos que já é consequência visível da guerra comercial em curso. Trump e seus apoiadores do Partido Republicano parecem esquecer-se da notória frase tantas vezes utilizada por Milton Friedman, “there is no free lunch”. Surpreendendo novamente o mercado, Trump anunciou nessa semana um pacote de benefícios de US$ 12 bilhões ao setor agrícola, que já começa a sentir os primeiros efeitos das disputas comerciais com a China e com a União Europeia. Essa conta terá que ser paga em algum momento, mais provavelmente por futuros contribuintes americanos, muitos deles ainda nem nascidos. Essa é a maldição da irresponsabilidade intertemporal: ela é tão perversa que penaliza o cidadão antes mesmo dele ter nascido.
Tão perto como estamos do próximo pleito eleitoral, cabe a nós cidadãos e eleitores apoiar candidatos que tenham uma legítima e realista agenda política que priorize a austeridade fiscal, o estado mínimo e o compromisso para com as gerações futuras. Infelizmente nosso tempo se esgotou e estamos com um alto risco de voltarmos a um ciclo de recessão econômica mal tendo saído daquele no qual nos encontramos. A combinação de turbulências externas, a precariedade das nossas contas públicas e o acúmulo de outras fragilidades têm o potencial de desencadear uma nova crise com consequências severas e duradouras, pondo a perder a década que ainda está por vir.
+ Assista ao hangout “Incerteza Global”, com participação de Sérvulo Dias, Marcos Troyjo e Paulo Roberto de Almeida: